Choque fatal: a ameaça da rede elétrica para a arara-azul-de-lear

13 de Oct / 2022 às 22h00 | Variadas

Em média três araras morrem todo mês vítimas de choques elétricos em postes que atravessam sua área de ocorrência, restrita ao sertão baiano.
A reportagem, autoria de Claudia Gaigher Jornalista ambiental especializada na cobertura dos biomas brasileiros e fotos de Thiago Filadelfo, publicada no site O Eco Jornalismo Ambiental, destaca uma triste realidade: Choque fatal: a ameaça da rede elétrica para a arara-azul-de-lear

Confira:

Quando você está em casa e percebe uma queda de energia, ou até mesmo um piscar na luz, nem sempre se preocupa com o que aconteceu na rede de distribuição para gerar essa oscilação. Foi justamente uma queda ou um piscar de luz nas casas de moradores do interior da Bahia que – perdoem o trocadilho – acendeu a luz de alerta para as pesquisadoras que tentam salvar a arara-azul-de-lear da extinção. 

Qual a relação da rede de energia com o risco de extinção das araras? Bem, com certeza você já viu aves pousadas em poste e linhas de energia. O que talvez você não tenha entendido é que esta cena é sinônimo de viver perigosamente para elas. 

Recentemente, um artigo publicado no periódico IBIS – International Journal of Avian Science por um grupo de pesquisadores, trouxe a confirmação de mais um alto preço que a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) paga por compartilhar seu habitat com seres humanos. A chegada da rede de energia, que promoveu melhoria na qualidade de vida de muitos brasileiros, trouxe também uma ameaça para aves raras: a eletroplessão. Quando a ave pousa nos postes de distribuição, recebe uma descarga elétrica acidental e morre em decorrência desse choque.

Uma das pesquisadoras que assina o artigo é a bióloga Larissa Biasotto, que trabalha no Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias, Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em sua tese de doutorado, ela mapeou os biomas e, a partir dos dados coletados em regiões com registro de morte de aves vítimas de descargas elétricas, montou um ranking das espécies com maior risco de morrerem por eletroplessão. 

“O risco foi calculado por espécie, baseado na densidade de postes dentro das áreas de distribuição e também em características morfológicas e comportamentais das espécies, como tamanho da asa e uso das estruturas de energia para pouso, forrageio, nidificação. Nesse trabalho nós apresentamos os biomas de maior risco e também as espécies”, conta Biasotto. 

A pesquisa identificou 283 espécies de aves que correm risco de eletroplessão, 38 delas vivem perigosamente expostas a um alto risco de morrer ao receber uma descarga elétrica. 

A Mata Atlântica é o bioma onde as aves mais convivem com esse risco, seguido pelo Cerrado, Pantanal, Pampa, Caatinga e Amazônia. Quanto mais avançam as redes, maiores são os riscos, e quanto mais devastado o habitat dessas aves, mais elas se habituam a usar os postes e redes como ponto de apoio e pouso. 

AS AVES MAIOR RISCO: No Pantanal, rota de mais de 180 espécies migratórias de aves, o tuiuiú (Jabiru mycteria), ave símbolo das planícies pantaneiras, está no topo da lista das aves com alto risco de eletroplessão. 

A segunda espécie com maior risco é a águia-serrana (Geranoaetus melanoleucus) encontrada no Nordeste, Centro Oeste e Sul do Brasil. Em terceiro lugar no ranking das aves mais expostas ao risco, está a águia-cinzenta (Urubitinga coronata). Uma das maiores aves de rapina do Brasil, ocorre em áreas de montanha, campos naturais do Sul, Sudeste e Centro Oeste. A espécie é considerada Em Perigo de extinção.

O gavião-de-pescoço-branco (Leptodon forbesi) é um gavião genuinamente nordestino e brasileiro. Essa ave de rapina registra um declínio populacional e restam aproximadamente 2.500 indivíduos no Brasil. Desde 2014 está na lista das espécies ameaçadas de extinção, como Criticamente Ameaçada. Ocorre em áreas de floresta nordestina, principalmente em Pernambuco. Com a redução de seu habitat, os fios de energia se tornaram mais um algoz.

O gavião-pombo-pequeno (Amadonastur lacernulatus) que só ocorre na Mata Atlântica, principalmente Serra do Mar e fragmentos de floresta nas cidades litorâneas, também está no ranking das aves mais expostas ao risco de morrer por choque ao pousar nas redes de energia. A espécie é classificada como Vulnerável ao risco de extinção.

A pesquisa da bióloga Larissa Biasotto norteou o artigo sobre o impacto das redes de energia nas populações de araras-azul-de-lear. A espécie foi escolhida como bandeira para alertar as autoridades e a população em geral sobre a necessidade de aliar o conhecimento científico e popular à tomada de decisão nos projetos de expansão das redes de distribuição de energia. 

Não é só construir postes e puxar fio para que os brasileiros tenham a comodidade de apertar um interruptor e ter luz elétrica em casa. Cada nova rede implica atravessar regiões de ocorrência de espécies cada vez mais ameaçadas com a perda de habitat e ausência de árvores nativas em suas rotas, que acabam usando os postes e fios como ponto de pouso para descanso em suas longas viagens em busca de comida.  

A arara-azul-de-lear faz longos voos diários para se alimentar. Chega a voar mais de 60 quilômetros num único dia. Seu prato preferido são os cocos de Licuri, uma palmeira nativa da Caatinga e que está cada dia mais rara. Para muitos indivíduos, as viagens terminam tragicamente. 

“Em 2008 tivemos o primeiro registro de arara-azul-de-lear morta eletrocutada, foi no Raso da Catarina, na Bahia. Isso nos entristeceu e preocupou. Os moradores das comunidades da região nos avisaram que encontraram uma carcaça de arara azul com ferimentos característicos de um choque. Ela estava caída perto do poste. Nos últimos dois anos aumentou muito o número de araras azuis encontradas mortas eletrocutadas. Os moradores locais são os nossos grandes aliados. Eles encontram as carcaças das aves mortas, recolhem e nos informam. Tem sido uma média de três araras mortas por mês, só esse ano já somam 32. E esse número é muito maior, porque existe a subnotificação, nem sempre conseguimos saber a quantidade de araras mortas por choque na rede de energia”, explica Biasotto. 

Para uma espécie que tem a população em vida livre reduzida a menos de 1.500 indivíduos, o número de mortes registradas já é alarmante o suficiente. Quando considerada a subnotificação, é desesperador, como reforça a bióloga Érica Pacífico, outra autora do artigo, fundadora e coordenadora do projeto Grupo de Pesquisa e Conservação da Arara Azul de Lear. Há mais de uma década ela se dedica a estudar e buscar caminhos para evitar a extinção dessa ave. Arrisca-se escalando os paredões de arenito para chegar aos ninhos, trabalha com outros pesquisadores para conhecer a biologia e comportamento dessa arara e já se integrou à comunidade local, que tem se mostrado grande aliada na luta para evitar a extinção da espécie. 

Extremamente rara, a arara-azul-de-lear só ocorre na ecorregião do Raso da Catarina e nas unidades de conservação do Boqueirão da Onça, na Bahia. Um paredão de arenito vermelho, alto e de difícil acesso. No meio da rocha, uma fenda pequena onde pontos azuis se refugiam. Assim é o ambiente onde a arara-azul-de-lear faz os seus ninhos na rocha e é ali onde se reproduz. Essa espécie é restrita da Caatinga, único bioma totalmente brasileiro. São décadas de ameaças, que a fizeram beirar quase a extinção, mas elas são teimosas. Corajosas e lindas. 

Com a instalação dos postes de rede de média tensão para levar energia para as comunidades, os acidentes e mortes de araras têm aumentado. “O ideal é que seja desenvolvido um programa de monitoramento com buscas bem definidas pelas carcaças todo mês, com um tempo certo, percorrendo trechos específicos, com pessoas treinadas. Mesmo sem essa padronização já deu pra ter noção da gravidade do problema”, afirma Thiago Filadelfo, que também é pesquisador do grupo de conservação e coautor do artigo científico. 

Os pesquisadores explicam que as linhas de energia de média tensão podem constituir uma armadilha ecológica, pois oferecem locais atraentes para poleiros ou nidificação. 

“A eletrocussão ocorre quando um animal toca condutores bifásicos ou um condutor e um dispositivo aterrado em um poste. Todas as carcaças foram encontradas sob ou muito perto de postes de energia e a maioria com sinais externos claros de eletrocussão, áreas queimadas no bico, corpo, penas e falanges. Sempre que possível recuperamos a carcaça e submetemos à necropsia para confirmar a morte por lesões provocadas pelas descargas elétricas. As carcaças das araras vão para a Coordenadoria de Gestão de Fauna do INEMA, Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, órgão ambiental da Bahia, para posterior notificação da companhia de energia”, acrescenta Érica. 

A explicação da bióloga é quase um grito de socorro. São anos de pesquisa e luta para proteger essa espécie, e ver mais de 30 indivíduos morrerem por choque elétrico é um golpe duro . Para esses cientistas que tanto se  dedicam a estar no campo, produzir conhecimento científico, buscar apoio da comunidade e caminhos para conservação pra que mais gerações possam ver esses pingos de azul voando pela caatinga baianana, não é apenas um projeto de pesquisa, é um amor incondicional por uma das mais belas espécies de araras brasileiras. Vê-las eletrocutadas provoca uma tristeza profunda, um desalento e até mesmo revolta. 

A arara-azul-de-lear ocorre numa região muito restrita, e as instalações de postes de média tensão com um distanciamento pequeno na rota das araras estão matando os indivíduos. Um contrassenso diante de todo o esforço para salvar essa espécie. 

Essa ave que pode viver 50 anos na natureza, quase desapareceu nas últimas três décadas de tanto que foi capturada para ser vendida no mercado ilegal de animais silvestres. A devastação de seu habitat também contribuiu para acelerar o declínio populacional. E, agora, a rede de energia.

O novo desafio se impõe justamente numa época de grandes conquistas para a conservação da espécie. Em 2019, as seis primeiras araras-azuis-de-lear foram soltas na região do Boqueirão da Onça. Em 2021, mais seis araras-azuis-de-lear do Programa de Manejo Populacional do ICMBio, vítimas do tráfico ou de acidentes na natureza, foram devolvidas à natureza depois de meses de tratamento para se recuperar de lesões provocadas por maus-tratos.

“Entre os anos de 2021 e 2022, mais treze araras foram soltas na região, devolvendo à natureza não apenas indivíduos provenientes do Programa de Manejo Populacional da arara-azul-de-lear coordenado pelo ICMBio, mas também araras resgatadas acidentadas na natureza e vítimas do tráfico ilegal, que infelizmente ainda assombra essa espécie“, afirma a pesquisadora Fernanda Riera Paschotto mestranda do Departamento de Ecologia da USP que também participou do estudo.

A abertura da porta do viveiro e a saída dessas araras batendo freneticamente as asas e voando livres em seu lugar de origem são imagens eternizadas na mente e na alma de quem teve o privilégio de participar desse programa de reforço populacional. Ver a comunidade tradicional que sempre viveu na região se tornar aliada na conservação, como cientistas cidadãos, é outro grande avanço. 

Thiago Filadelfo conta que já foram realizados muitos encontros, grupos de estudos com os pesquisadores e instituições que pesquisam as araras-azuis-de-lear na região. “Estivemos conversando com a COELBA (empresa distribuidora do Grupo Neoenergia) nos últimos 2-3 anos sem sucesso. Apenas quando o Ministério Público foi acionado, no ano passado, começaram a dar atenção e iniciamos um diálogo. Sobre o andamento das medidas mitigadoras, o Ministério Público elaborou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) no qual sugerimos ações para evitar as eletroplessões. Sei que já começaram a trocar o design das linhas em alguns trechos das redes na região de Euclides da Cunha, mas não sei dar maiores detalhes sobre o cronograma. A malha elétrica é imensa e deverá ser um trabalho longo”, explica o pesquisador.

Enquanto não são aplicadas essas medidas de proteção, as araras-azuis-de-lear continuam morrendo vítimas de choque. Por isso, é possível até usar a expressão ‘eletrocutadas’, que gramaticalmente só pode ser aplicada quando algum ser vivo é “condenado por uma sentença a morrer por descarga elétrica”. Já a expressão ‘eletroplessão’ é o termo usado para os que morrem num instante de acaso, quando entram em contato com redes energizadas e recebem uma descarga. 

Nesse caso das araras-azuis-de-lear, o termo gramaticalmente indicado seria eletroplessão. Mas se pararmos para pensar, esticar fios em postes bem perto uns dos outros, atravessando áreas de reprodução e de alimentação dessas aves, é mesmo uma sentença de morte.

O EcoJornalismo Ambiental Foto Thiago Filadelfo

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