Artigo - Adeus ingrata ingratidão

10 de Oct / 2022 às 23h00 | Espaço do Leitor

Temos diversos motivos para agradecer as coisas boas que recebemos na vida e costuma-se render graças pela oportunidade de existir e evoluir. Acordar, dormir, levantar com saúde são benefícios extraordinários para os seres humanos. Entretanto, entende-se que a virtude, chamada gratidão, está fora de moda, porque o sentimento de ingratidão permanece enraizado na espécie humana deixando nítido traições e profunda incapacidade de experimentar sentimento de afeição pelas dádivas adquiridas. Isso evidencia grandes desafios inerentes ao reconhecimento daquilo que se recebe e a importância de cumplicidade entre as pessoas.

Etimologicamente a palavra gratidão, que deriva do latim, é traduzida como estar agradecido ou ser grato. O Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa - Michaelis define que gratidão é o "sentimento experimentado por uma pessoa em relação a alguém que lhe concedeu algum favor". O conceito de gratidão ainda é mal compreendido pelas pessoas onde é comum considerarem “obrigado” e “gratidão” sinônimos. 

Embora a palavra 'obrigado' seja comumente usada para agradecer a alguém, deve-se considerar que ao longo da evolução da humanidade essa palavra perdeu o seu significado original que é literalmente "ligar, amarrar". Quando falamos "obrigado" estamos dizendo "estou lhe devendo essa!" “estou amarrado a você por esse favor”. Já a expressão 'gratidão' está ligada a sentimentos nobres carregados de amor, verdade e justiça. O ser grato agradece profundamente pelo que recebe e valoriza pequenas e grandes obras. Um simples "obrigado" é chique e elegante, porém não representa o sentimento genuíno de gratidão. Quem é agradecido é mais feliz. 

A prática da gratidão é um santo remédio para curar muitas enfermidades possibilitando uma vida mais saudável e longeva. Para a Psicologia Positiva a gratidão é concebida como uma virtude moral, um sentimento moral ou mesmo uma emoção que pode ajudar na harmonização entre os indivíduos fortalecendo as interações sustentavelmente. A esse respeito, Cohen abordou que a gratidão pode motivar a confiança nos relacionamentos e Santo Agostinho foi categórico em pontuar que a amizade se expressa na ajuda mútua e na gratidão.

O reconhecimento seguido de profundo agradecimento são requisitos fundamentais a uma vida plena e satisfatória. Para Billy Graham "de um lado a outro da Bíblia Sagrada, somos ordenados a sermos gratos. A gratidão é o fluxo natural de um coração que está sintonizado com Deus". Essa comunhão nos remete à cultura do agradecimento. É por esse motivo que Cícero abordou que "nenhum dever é mais importante do que a gratidão". Ser grato é ser verdadeiramente humano em potencial de crescimento.

Comte-Sponville externou que uma pessoa grata é aquela capaz de ver no outro a causa da sua alegria. Ser amigo e ter amigos são coisas complexas porque exigem amor. Quem ama sempre quer o bem do outro e por isso agradece com ternura, satisfação e jamais esquece. Quem tem um amigo agradece com amor a verdadeira amizade que atua como um bálsamo suave nas mentes. Bono e McCullough registraram que a gratidão também pode proteger-nos contra transtornos psiquiátricos promovendo saúde mental através da força do amor. 

Já a ingratidão se apresenta por diversas maneiras nos relacionamentos por meio do egoísmo, da vaidade exacerbada, ciúmes doentios e traições. Um ser ingrato, na maioria das vezes, sente-se merecedor de todos os benefícios da vida e acredita que o outro tem sempre a obrigação de servi-lo.  Quem é ingrato geralmente não tem consciência plena das dádivas recebidas e por isso segue sem reconhecer o valor das boas ações. Johann Goethe disse que a “ingratidão é uma forma de fraqueza. Jamais conheci homem de valor que fosse ingrato”. Essa fraqueza pode se manifestar no nosso dia a dia através das murmurações conscientes ou inconscientes como, por exemplo: 
- Poxa vida, hoje está muito quente meu povo!
- Hoje está muito frio rapaziada!
- Essa minha profissão é um porre de chata!
- Eu seria mais feliz se eu tivesse uma estatura maior!
 - Se eu fosse famoso eu agradeceria todo dia!
- Só tem pão cadê a manteiga? Assim não dá pra viver!
- Não pedir para nascer nesse mundo!
- Eu sou um azarado só nasci para sofrer! Como agradecer com essa vida?

Ou seja, somos tentados a viver a vida do outro ao invés da nossa e nos comparamos, o tempo todo, a estereótipo imaginário ideal. Isso cresce a tal ponto que supervalorizamos a vida das outras pessoas em detrimento da nossa realidade existencial. Costumamos acreditar que a vida do vizinho é a melhor. Insistimos que a casa mais linda, a melhor família, os melhores alimentos, a melhor renda estão sempre presentes na vizinhança e nunca em nossos lares. Temos uma visão muito duvidosa sobre a vida íntima das pessoas em nossa volta. Quer saber da verdade sobre a vida de seu vizinho? Passe um tempo morando com ele que você vai saber. A vida do outro é um terreno no qual não podemos intervir e nem tirar conclusões porque cada um cuida de si conforme a sua realidade. 

Miguel de Cervantes considera a ingratidão filha da soberba. Esse orgulho exagerado de si mesmo tem levado muitas pessoas ao egocentrismo causando-lhes doenças crônicas inviabilizando as relações harmônicas. Quando as coisas não estão milimetricamente conforme queremos damos chiliques e reclamações tolas desabrocham. Respeitando o direito de ir e vir   Machado de Assis nos alerta dizendo que “a ingratidão é um direito do qual não se deve fazer uso”, porque quando praticado resulta em sofrimentos. 


Geralmente um ser desprovido de gratidão carrega no seu íntimo tonelada de infelicidade e a esse respeito Victor Hugo destacou que “os infelizes são ingratos; isso faz parte da infelicidade deles”. Wasko Martins foi firme em dizer que “a ingratidão é um câncer que consome aquele que a possui”, mostrando que o ser humano não grato é portador de enfermidades graves apresentando dificuldades de perdoar. Sobre essa temática, Neto sugere que “pessoas gratas apresentam mais propensão a perdoar” sendo mais felizes e prósperas. Por isso, William Shakespeare não polpou em dizer que "a gratidão é o único tesouro dos humildes".

O ser grato é rico porque possui fidelidade ao seu real tamanho e respeita os direitos coletivos sendo mais agradável e menos narcisista. McWilliams e Lependorf afirmaram que os narcisistas são incapazes de externar gratidão por apresentarem grandes dificuldades em reconhecer os seus limites. Além disso, de acordo com Kashdan e Breenan, as pessoas que supervalorizam os bens materiais são mais propensas a terem menos gratidão. Essa autossuficiência tem funcionado como combustível à ingratidão enclausurando as pessoas do bom convívio social. Para o filósofo japonês Meishu-Sama "é realmente verdade que gratidão gera gratidão e lamúria gera lamúria", ou seja, uma queixa puxa outra e a bola de neve vai crescendo exponencialmente. 

Parafraseando a terceira Lei de Newton pode-se afirmar que toda ação corresponderá a uma reação em sentido contrário com a mesma intensidade. Sendo assim, vale simplificar que de acordo com a semeadura praticada o resultado será inevitável. Fortalecendo essa ideia Legião Urbana, na música Boomerang Blues, poeticamente expressa que "tudo o que você faz um dia volta pra você" e que segundo Arruda “a gratidão atrai, a ingratidão repele”. Ademais, Piaget fez questão em se posicionar sobre esse assunto externando que “a gratidão é um importante antídoto ao individualismo que atua na valorização do benefício recebido promovendo visibilidade ao benfeitor”. 

Portanto, reconhecendo que somos seres sociáveis e portadores de inteligência, uma vez que não temos recursos suficientes para pagar tudo que a vida nos proporciona, é prudente agradecermos pelas misericórdias dispensadas que podem se apresentar de forma micro ou macroscopicamente. Para essa visão holística Sêneca não deixou passar e escreveu que "quem acolhe um benefício com gratidão, paga a primeira prestação da sua dívida". Só não vale passarmos a vida inteira, ao lado das pessoas que amamos, indiferentes no que diz respeito ao reconhecimento da importância do outro nas nossas vidas. Escrevendo isso, lembrei-me de uma frase de O Diário de Anne Frank que diz "os mortos recebem mais flores do que os vivos porque o remorso é mais forte que a gratidão". Por causa disso, meus amigos e minhas amigas, é importante lembrar que hoje é o dia e agora é a hora de celebrar a vida com a própria vida, pois amanhã pode ser tarde demais!

Josiel Bezerra - Professor de Biologia - Mestrando UPE (Universidade de Pernambuco) - Ciência e Tecnologia Ambiental.

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