Envolvida pelas tensões e dúvidas que marcam as eleições 2022, saí em busca da imagem idealizada da República Federativa do Brasil – de um Estado democrático de direito – retratada no art. 1º da Constituição Federal de 1988. Nessa releitura, retomei algumas particularidades do sistema eleitoral brasileiro que permite ao povo exercitar o seu direito de dispor do voto “consciente” e “secreto”, enquanto um instrumento de mudança política e social.
No entanto, nessas últimas décadas, as possibilidades de exercício “pleno de consciência” ficaram comprometidas por um ciclo vicioso de problemas que atrasam o processo de democratização e republicanização do Estado brasileiro.
Consideramos que a República brasileira – que (sobre)vive em estado crônico de agonia – exige, imediatamente, um conjunto de políticas públicas de combate às desigualdades sociais. Em decorrência dessa crise institucional, o corpo da nação padece, fragilizado pela miséria e a fome que atingem os segmentos mais pobres da população brasileira.
A cena de seres descarnados disputando com urubus as migalhas de comida nos lixões de São Paulo, assim como as milhares de sepulturas cavadas para receber os corpos anônimos da covid-19 e o cenário apocalíptico da Cracolândia paulista habitada por uma “multidão de zumbis”, são revoltantes. Estes cenários e personagens nos remetem ao tríptico O Juízo Final (c. 1482) pintado pelo holandês Hieronymus Bosch, que ainda hoje cumpre com o seu objetivo de nos advertir sobre o perigo da Besta e o reaparecimento de monstros em tempos sombrios.
Para nos ajudar a reavaliar os momentos de agonia da nação republicana e da fragilidade da democracia brasileira, retomo Hannah Arendt, cujas reflexões ajudam a analisar a crise dos direitos humanos que impõe o estado de medo e favorece a retomada dos preconceitos. O fato é que as dimensões dessa crise (social, econômica, cultural e psicológica) ampliaram-se ainda mais sob o impacto devastador da pandemia, que, além das 686 mil mortes, excluiu do sistema público de saúde e educacional um grande número de pretos, pardos e indígenas. Atualmente, o regime de cotas tenta sanar os resquícios de um passado comprometido pela escravidão dos povos africanos e extermínio dos povos indígenas.
Ainda que a taxa de analfabetismo no Brasil passou de 6,8%, em 2018, para 6,6%, em 2019, de acordo com dados da Pnad Contínua Educação, o Brasil tem ainda 11 milhões de analfabetos. Pelos critérios do IBGE, “são pessoas incapazes de ler e escrever nem ao menos um bilhete simples” (Agência Brasil, 17/7/2020). E tem muito mais: desde a proclamação da República em 15 de novembro de 1889, os ideais republicanos da Liberdade, Igualdade, Dignidade da Pessoa Humana e Justiça foram sendo minados por práticas conservadoras e autoritárias contrariando o ideal de uma sociedade pluralista.
Assim nasceu a República brasileira que pretendia ser moderna no seu liberalismo, mas nasceu sufocada pela censura e índole territorialista das elites políticas. O ideário republicano, fundado no lema Ordem e Progresso, prestou-se ao longo do século 20 para encobrir interesses de grupos preocupados em perpetuar o monopólio do exercício do poder. Essa tensão se fez latente desde os primeiros anos da República, cujo destino era disputado por proprietários rurais, camadas médias urbanas e militares; cada qual, respectivamente, distinto por seus paradigmas. Hoje, os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade cooptados do liberalismo e da maçonaria continuam servindo de refrão para políticos e intelectuais interessados em usufruir de benesses republicanas.
A atual República agonizante clama pela recuperação de políticas e práticas transformadoras no campo dos direitos humanos. Assim, caberá aos vencedores desta eleição consertar os estragos causados pelo Estado brasileiro, que não conseguiu romper o círculo crônico do analfabetismo, da miséria e da ignorância.
É sob o viés da República e o povo que devemos avaliar a atual situação do País. Se as “doenças” que acometem a nação forem diagnosticadas em tempo presente, poderemos vislumbrar um regime francamente democrático. Conclamando o vencedor a legitimar a posse do poder com o selo da moderação, benignidade e justiça, daremos “Vivas à Democracia e à Liberdade”. Enfim, como muito bem proclamou Machado de Assis em seu romance Quincas Borba, publicado em 1891: “Ao vencedor as batatas!”, expressão que dá título ao clássico livro de Roberto Schwartz.
Por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
© Copyright RedeGN. 2009 - 2024. Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do autor.