Notícia é quando uma pessoa morde um cachorro, e não quando um cachorro morde um ser humano. Hoje é assim? Não.
Os humanos passaram a morder os cachorros com naturalidade.
Os meios de comunicação, desde a criação da imprensa, utilizaram fatos inéditos, ocorrências excepcionais, incidentes incomuns para chamar a atenção do público. Acidentes, assassinatos e brigas políticas inundavam e ainda inundam as páginas dos jornais e de outros meios de comunicação.
O tempo passou e as novas tecnologias mudaram as coisas de lugar. Hoje, especialmente nas redes, o leitor busca o sensacional, o exótico, o extravagante, visível por meio de afirmativas que invertem os significados de consenso. A terra plana, a negação da vacina e a substituição da urna eletrônica pelo voto impresso são exemplos de inversão do sentido das coisas. Fatos óbvios, comprovados pela ciência ou pela história, tem o seu significado invertido. A existência do Holocausto, por exemplo.
Observem: a relação entre os internautas e as novas linguagens utilizadas na rede tende para ampliação do narciso, do Eu. Exemplo: as fotos pessoais proliferam. A política se transforma em um EUZÃO. Um lugar de encontro entre identidades semelhantes e antiguidades excêntricas representadas por sujeitos empoderados pela rede, supostamente donos da cena nacional e internacional. No palco, princesas dos contos de fada tratam a vida como se ela fosse sonho.
Sonho e realidade, com fronteiras indefinidas, se prostituem no ambiente virtual.
Os sonhos e o universo virtual substituem a velha sensação de pé no chão diante da realidade, boa ou má. Primeiro passo para a solução de problemas é enfrentar a realidade. Para matar a fome é preciso de terra para plantar, de água para regar e do trabalho, da cabeça, do tronco e dos membros, superiores e inferiores, de uma criatura humana. A terra dá, apenas plantando. Simples como dois e dois são quatro. Mas há quem prefira acreditar em contos de fada. Cuidado.
Por quê?
Brincadeiras à parte, na última década, com o uso acentuado das novas tecnologias ocorreu um descolamento na relação entre as palavras e as coisas, um descolamento do sentido do que elas significavam materialmente ou metaforicamente. Aprendemos a separar uma coisa da outra na escola e na literatura. Em termos de linguagem, também observo uma tendência para uma criminalização e em alguns casos, graves assassinatos do riso, modalidade historicamente utilizada na crítica social. Ao mesmo tempo observo grande proliferação das mentiras. O riso sofre perseguição (intensa). A minha querida Mafalda que o diga. Foi totalmente eliminada das avaliações do Enem. Bem a Mafalda, personagem querida, responsável por tanta inteligência e alegria nas provas.
O riso desde o início da modernidade fez bem para as sociedades. A Commedia Dell’ Arte, com suas inúmeras máscaras, tem raízes profundas na história do Ocidente. Quantos segredos foram expostos para as sociedades e quantas mentiras foram reveladas pelas personagens, pelo bobo, pelo bufão e pelo Arlequim. Quanta gente se pôs a pensar por meio do riso. A arte, a representação é uma só, no palco, na rua e na política. O corpo tem papel importante na arte da representação. A cabeça e o rosto expressam o bem, contém o saber (cérebro); os olhos guardam a expressão do sagrado, do amor, da luz; as mãos e os pés, do trabalho. Michel de Certau lembra: “Cada sociedade tem seu corpo”.
Que corpos representam o Brasil?
A linguagem romântica sempre escolheu os olhos para dizer as coisas. Colocou o bem na parte superior do corpo e deixou o mal para as partes baixas do corpo.
A linguagem científica, representada pela cabeça, sempre se utilizou da razão (cérebro). Ela, a razão, exigiu das hipóteses, provas. A linguagem científica exigiu método para falar das coisas, justificou e, evitou, como regra de ouro, o uso de adjetivos. Compôs uma percepção de rigor e objetividade como forma de narrar. A linguagem científica é bem representada pelo cérebro, massa encefálica, sem terminações nervosas, ligada à razão.
A linguagem jurídica sempre reivindicou o respeito às leis e às normas para a obtenção de justiça. Ciente do seu papel como linguagem oficial, engravatados usam e abusam de uma linguagem rebuscada, arcaica, utilizando estruturas gramaticais ausentes do cotidiano, resultando em um texto de difícil compreensão para os leigos. Trata-se de um discurso que reafirma a identidade de um determinado grupo e afasta o comum dos mortais. A linguagem jurídica, muito utilizada na resolução de conflitos, não raro é código secreto. Nem sempre a parte prejudicada compreende os caminhos trilhados e as justificativas burocráticas responsáveis por extravagantes vitórias ou derrotas nos processos. Do ponto de vista simbólico também é uma linguagem nobre, contida, no cérebro, na língua e no pescoço, exigindo, sempre, gravata.
A linguagem política, até poucos anos atrás, era a mais hábil junção da linguagem popular com a linguagem erudita. Envolvia uso apurado da cabeça, do tronco e dos membros superiores e inferiores. Era a arte de juntar todas as partes do corpo humano inclusive emoções, com destaque, na hora certa, para o riso. Era a arte de selecionar boas metáforas, despertar o riso, mencionar o erótico em adequada interseção com o espírito, uma forma da arte política tratar ao mesmo tempo honras, virtudes e realizar críticas mordazes. Irreverência na dose certa, era a arte de marqueteiros, aptos a medir o grau das transgressões possíveis, construindo uma linguagem capaz de agradar gregos e troianos, ricos e pobres, torcedores do Flamengo ou do Fluminense, do Corinthians e do São Paulo. Arte requintada dos artistas políticos respeitosos de todas as modalidades futebolistas internacionais, nacionais, estatuais e municipais. O riso faz parte de um processo de simbolização que nos diferencia dos animais, fazendo uma coisa expressar outra. A representação, de uma coisa pela outra, está no nascedouro da arte política. Se a ideia de representação morrer, a política morre junto. A arte da política nasceu com o teatro. Maquiavel também escreveu peças de teatro, além de O Príncipe, onde o autor ensinou a arte de fazer política.
Tudo isto funcionou no mundo e Brasil desde que os gregos e romanos passaram a usar máscaras, que o teatro e a Commedia Dell’Arte inventaram formas de contar histórias para ensinar a ver as mazelas dos humanos e da política na pólis (cidade).
De formas variadas os meios de comunicação, o rádio, a televisão, os jornais, as revistas, o teatro, o cinema e a política, se utilizaram, ao longo de séculos, das linguagens para fazer desencobrir coisas (transparência), causar incômodo, criticar fatos e ideias escondidas ou embaralhadas entre meias verdades ou mentiras. Shakespeare fez isto em Hamlet. Para desmascarar uma pessoa, coisa ou ideia, para questionar uma hipótese, para discutir é necessário, primeiro, reconhecer a materialidade de uma coisa, fato ou pensamento. Na sequência as artes e a política fazem o resto. Plantam a crítica. A crítica comportada ou estimulada pela tragédia ou pelo riso permite desvendar o rei, a corte ou os personagens políticos.
Os criadores, produtores e divulgadores das novas tecnologias produziram uma maravilha perigosíssima. Uma tecnologia capaz de empoderar todas as pessoas, dando a elas o poder de falar com as multidões, interferir nas instituições e de misturar o real com o virtual. Acabar com a “coisa”, com o objeto (material ou imaterial) em torno do qual se faz a crítica. Matar a ideia de representação. Fazer crer existirem, de fato, princesas!
A população do Brasil e dos Estados Unidos foi premiada com a lâmpada de Aladim e seu gênio. O gênio, um escravo, apto para realizar qualquer desejo: de amor ou ódio, de violência ou paz. Capaz de excluir desafetos, enriquecer os amigos, eliminar os comunistas, favorecer os amigos e excluir definitivamente do planeta os pretensiosos donos da razão e da ciência.
Foram três os pedidos feitos por autoridades do Brasil e dos Estados Unidos para o gênio da lâmpada.
Primeiro pedido: uma princesa, eternamente doce, carinhosa e totalmente submissa, com capacidade de esconder qualquer vestígio de inteligência.
Segundo pedido: ser “imbrochável” na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e até na morte.
Terceiro pedido: ser eleito indefinidamente para o mesmo Congresso mantendo as prerrogativas concedidas para os políticos e jamais ser investigado.
Cuidado:
1. Princesas não existem;
2. Dependendo da conjuntura, do parceiro ou parceiros, todo mundo é brochável e
3. As eleições alteram de quatro em quatro anos tanto o Congresso como o presidente, porque ainda vivemos numa democracia.
Se alguém disser o contrário, cuidado, é mentira. Cuidem-se.
Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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