Os mercados são uma construção do povo. Mas, em um país sob o domínio do agronegócio, eles acabam caindo nas mãos das grandes corporações.
O caminho que parece irreversível tem do lado oposto uma coletividade que resiste a esta expansão. Combater a fome colocando alimentos saudáveis na mesa dos brasileiros, mesmo com a crise e a alta dos preços nas prateleiras, é uma das tônicas do movimento agroecológico no nordeste brasileiro.
Uma pesquisa recente feita em seis estados nordestinos pela Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural (Rede Ater) revela os efeitos dos mercados territoriais, aqueles construídos por organizações da agricultura familiar.
O levantamento comparou o desempenho econômico de famílias rurais quando comercializam seus alimentos orgânicos nestes tipos de mercados e quando sua produção está vinculada à intermediários e grandes redes de varejo.
No ano de 2020, ciclo agrícola analisado, a renda agrícola das famílias aumentou em 71% nos mercados territoriais agroecológicos - seja feiras, quitandas, ou dentro de programas institucionais. A diversidade de culturas para ofertar a população também aumentou, passou de 12 para uma variedade de 19 produtos.
"O que nós estamos vendo nesses mercados territoriais é que a alimentação saudável não precisa ser cara. Ela é cara quando é feita na forma de nicho. Quando os supermercados vendem produtos orgânicos, vendem caríssimos. Porque sempre tem alguém disposto a pagar caro. Os mercados territoriais colocam a alimentação saudável a preços acessíveis, equivalentes a todos os produtos que se vendem naquele território. É a democratização do acesso aos alimentos saudáveis", pontua Paulo Petersen, representantes da Rede Ater NE e integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
O semiárido brasileiro passa hoje por um processo de interiorização das grandes redes de supermercado, onde cresce o consumo de alimentos ultraprocessados entre os mais pobres. Nesse processo, a agricultura familiar vem perdendo espaço, e passa a ser refém das grandes cadeias verticais vinculadas à monocultura e ao uso intensivo de agrotóxicos. É o que analisa o especialista da ANA.
"É imposto sobre nós uma forma de produzir e uma forma de consumir o alimento. Boa parte dos problemas que o planeta vive hoje se deve a essa imposição dessas corporações sobre sistemas alimentares."
As famílias participantes do estudo, de 12 territórios e iniciativas distintas, fizeram a transição agroecológica ao mesmo tempo em que acessaram políticas públicas para a agricultura familiar.
"Sejam as compras institucionais, sejam as prefeituras, que podem apoiar a construção de feiras, de infraestruturas, das questões de vigilância sanitária, tem uma série de mecanismos que podem criar possibilidades para a formação e a multiplicação desses mercados, não são mercados imensos, mas são muitos mercados conectados entre si e nesse mercado produtores e consumidores definem as regras, definem preços, e são mercados que produzem a biodiversidade local", explica Petersen.
PARAÍBA: Na região da Borborema, no agreste paraibano, a agroecologia também tem um papel fundamental na melhora da saúde e também da economia das famílias camponesas.
Por lá, uma rede consolidada de 12 feiras agroecológicas atende 13 municípios. Também há a presença das quitandas, que são pontos fixos de comercialização de produtos da agricultura familiar. A região é um celeiro da preservação de sementes crioulas, que na Paraíba são conhecidas como sementes da paixão.
"A gente que é agricultora, assentada, a gente também está junto nessa rede, para dizer que a gente precisa de um outro modelo, que não seja a partir do uso intensivo dos recursos naturais, mas a partir da agricultura familiar camponesa. E nossas experiências estão no Brasil todo, de norte a sul do país", garante Roselita Victor da Costa Albuquerque, diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras rurais do município de Remígio.
"A gente pensa na macaxeira, a gente pensa na batata, a gente pensa no ovo da galinha de capoeira, em tantos outros produtos que vem da agricultura familiar, que estão nas feiras livres, e que não são valorizados pelas políticas do governo atual. As pessoas estão comendo alimentos que não são nutritivos", completa.
Assim como no polo da Borborema, no município pernambucano de Vitória de Santo Antão, as feiras agroecológicas são grandes aliadas no combate à insegurança alimentar. É o que garante a agricultora Rosenice do Espírito Santo.
"A gente vende na feira livre. A gente também vende de encomenda. O pessoal quer macaxeira e a gente entrega. Certo? Pimenta, a gente tem vários produtos. É bem diversificado."
Tanto as feiras, como os mercados territoriais, são modelos que sobrevivem mesmo com o desmonte das políticas agrárias e de enfrentamento à pobreza e a fome no atual governo.
Dados atualizados levantados pela Rede Penssan, mostram que, em 2022, 125,2 milhões de brasileiros estão em condição de insegurança alimentar e 33,1 milhões passando fome.
Entre 2012 e 2017, o Semiárido enfrentou a maior seca desde o primeiro registro dos níveis de chuva, em 1850. Ainda assim, segundo ressaltou a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), em 2016, nenhuma pessoa havia morrido por efeitos da estiagem.
A melhora das condições de vida das famílias tem relação com a possibilidade de acesso a políticas públicas, como o programa Bolsa Família, cujo amplo alcance fez o país sair do Mapa da Fome, em 2014.
Já o acesso à água própria para consumo e para possibilitar o cultivo agrícola veio por meio do Programa Cisternas, que atendeu mais de 5 milhões de brasileiros na região mais seca do país.
Quanto às iniciativas agroecológicas, elas se fortaleceram em 2003, a partir da criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos. As políticas estimularam as famílias rurais a produzirem alimentos para tentar amenizar o drama da fome. Esse foi o início da expansão da agroecologia.
"A gente costuma dizer na agroecologia que foram os principais programas de estímulo à agroecologia, porque eles estimularam a produção de alimentos locais e da biodiversidade, em um momento em que já nem tinham espaço de mercado em vários biomas do Brasil. E além disso, eles tem uma série de efeitos dentro das famílias, nas comunidades, como por exemplo, a participação protagonista das mulheres. A produção de alimentos, a comercialização de alimentos, sempre foram atividades lideradas pelas mulheres", relembra Paulo Petersen.
Até a criação dessas políticas públicas o que havia para a agricultura familiar era só a oferta de créditos, sempre induzidos para a produção de matéria prima para a indústria, em forma de commodities.
"Eu acho que nós tivemos experiências exitosas que chegavam em vários lugares, nos restaurantes populares, chegavam nas creches. Então eu acho que tem experiências que não precisa a gente criar, ela está aí, ela deu certo, se recompormos tudo isso, enfrentamos esse cenário de fome e a fome está na cidade, está na periferia, mas ela também é rural, principalmente no nordeste do Brasil", finaliza Roselita.
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