Desafiando algumas regras do texto jornalístico, vamos começar pela “notícia velha”. Entre 2016 e 2017, o Brasil viveu um surto de febre amarela. O primeiro alerta veio a partir da morte de macacos contaminados. Naquele momento, foram raros os jornalistas que se preocuparam com o impacto que as notícias poderiam ter para os símios.
Se ninguém falava que eles eram perigosos para os humanos, também não havia esclarecimentos a respeito do seu papel no ciclo do vírus. Em pouco tempo, surgia uma nova pauta: macacos sendo assassinados no país inteiro.
Mortes que eram fruto do medo, da ignorância e, principalmente, de uma cultura especista – ou seja, uma cultura em que o direito à vida das outras espécies é constantemente desconsiderado.
Mas a imprensa reagiu rapidamente. Em todo o país, foram publicadas reportagens sobre o verdadeiro papel dos macacos naquela situação. Vimos ascender o termo “anjo da guarda” em relação aos animais. As mortes cessaram. Essa é só uma pequena amostra do poder que temos como jornalistas. Uma notícia bem-intencionada, mas ainda assim mal contextualizada, pode levar a inúmeras mortes. Em 2017, o caso atingiu tal gravidade que o Ministério do Meio Ambiente precisou emitir um comunicado sobre o risco de extinção de algumas espécies de macacos devido à violência humana.
Por outro lado, nosso trabalho pode salvar incontáveis vidas. Agora, o desafio chama-se varíola dos macacos. Como pesquisadora, venho analisando a cobertura da imprensa sobre o caso a partir do prisma dos direitos dos animais. Muita coisa mudou para melhor. No projeto de pesquisa em que estudo a representação dos animais na imprensa brasileira, encontrei uma grande quantidade de matérias que contextualizam o papel dos animais no ciclo do vírus e alertam para que eles não sejam maltratados. É um avanço animador: mostra que o compromisso ético dos jornalistas com as demais espécies vem crescendo.
Ainda assim, a chegada da doença no Brasil reacendeu a violência contra os animais não-humanos. Em diversas cidades, macacos estão sendo mortos de forma cruel por causa do surto. Dessa vez, é o Ministério da Saúde que emite apelo para que as pessoas não matem os símios. Comprovando uma mudança no compasso moral, a situação está sendo amplamente noticiada. Mas a raiz mais forte do problema está em cada título, de cada matéria veiculada: o nome da doença faz uma ligação direta com os símios, criando uma falsa analogia. A doença foi identificada, ainda em 1950, quando um grupo de macacos mantidos como cobaias foi infectado pelo vírus. Daí o termo varíola dos macacos.
A urgência em mudar a nomenclatura é real. Tanto que a Organização Mundial de Saúde abriu duas consultas – uma entre especialistas e outra pública – para renomear a doença. A imprensa, no entanto, pode assumir um papel fundamental para impedir a matança ao adotar uma nomenclatura alternativa para a doença desde já. Inúmeras organizações de direitos dos animais propõem o nome “nova varíola”. Uma alternativa que pode salvar centenas, talvez milhares de vidas, enquanto o trabalho da OMS não é concluído. Especialmente se for acompanhada de textos que tragam sempre a correta contextualização da doença e orientações sobre o direito dos animais à vida.
Se parece pouco ou ineficiente, gostaria de fazer mais uma volta ao passado. Durante décadas, a toxoplasmose foi denominada “doença do gato”. Estudando as coberturas de surtos da doença, foi possível identificar que, logo após a divulgação na imprensa, surgia um rastro de gatos mortos e abandonados. Como, durante muito tempo, o abandono e os maus tratos de animais domésticos, principalmente em situação de rua, recebiam pouca atenção da sociedade em geral, a nomenclatura perdurou por décadas. Mas a união entre especialistas da área de saúde, protetores dos animais e jornalistas virou o jogo: dia após dia, a denominação foi sendo substituída na mídia pelo verdadeiro nome da doença, toxoplasmose.
Essa mudança foi benéfica não apenas para os gatos. Nomenclaturas equivocadas associadas a textos que não contextualizam corretamente as doenças também matam humanos. No caso da toxoplasmose, o senso comum associava a infecção aos felinos de tal maneira que pouco se observava os principais fatores de disseminação do protozoário – entre eles consumir alimentos higienizados e bem cozidos. O saldo era negativo para todas as espécies.
Mesmo vivendo num cenário em que a velocidade da produção de notícias é cada vez maior, os assassinatos desses animais também são um lembrete para as responsabilidades da nossa profissão. Pensar sempre qual impacto nossas notícias poderão ter na vida de todos – inclusive das outras espécies – é essencial. Questionar velhos conceitos, como nomenclaturas especistas, e se lembrar, sempre, da importância de aprofundar e contextualizar os temas pode virar o jogo. O jornalismo tem o poder de mudar a cultura e a cultura muda o mundo. Sabendo que os casos de zoonoses só tendem a aumentar num planeta em plena crise ambiental, que nosso trabalho possa ser uma fonte de informação e esclarecimento, contribuindo para um futuro de justiça para todas as espécies.
Eveline Baptistella-Pesquisadora e professora de jornalismo na Universidade do Estado de Mato Grosso. É Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea – Comunicação e Cultura, pela Universidade Federal de Mato Grosso. Sua pesquisa é voltada para o campo dos estudos animais, estudos de mídia e das práticas de jornalismo ambiental e científico
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