O cerrado queima em níveis recorde neste ano. Até agosto, foram registrados 20.095 pontos de incêndio no bioma, número superior ao que foi identificado na Amazônia - 16.874 - e na Mata Atlântica — 4.684 —, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A marca da destruição no cerrado corresponde a quase metade das queimadas em todo o Brasil, representando 45% do total. Somente em maio, foram 3.578 focos, o pior número para o mês desde que o levantamento começou a ser feito por satélite, em 1998.
Os dados são preocupantes, ainda mais quando se leva em conta que o período mais crítico da temporada de seca ainda está começando — agosto, setembro e outubro. A média da quantidade de focos ativos por ano nesses meses é de 14 mil, 22,7 mil e 12,3 mil, respectivamente. Conforme as estatísticas do Inpe, os focos de incêndio florestal aumentaram 283% entre janeiro e julho no Brasil. Mato Grosso, estado onde o cerrado corresponde a 40% da vegetação natural, tem sido o mais afetado.
A facilidade com que surgem as queimadas no cerrado se explica não só pelas próprias características do bioma, que facilitam a combustão natural no período seco, mas, também, por ação humana. Letícia Gomes, doutora em ecologia pela UnB, descreve essas características:
"A vegetação é composta por gramas e pequenos arbustos que, durante a estação seca, perdem água e se tornam combustível para as queimadas, que precisam de uma fonte de ignição para começar a arder. Naturalmente, essas fontes de ignição são os raios, porém, neste período do ano, raramente ocorrem. Assim, a fonte de ignição neste período é, principalmente, antrópica (provocadas pelo homem): queimadas não autorizadas para fins agropecuários que acabam se descontrolando e atingindo a vegetação nativa do entorno".
Por mais que a ação do fogo faça parte da dinâmica do cerrado, a ação humana é prejudicial para o funcionamento do ecossistema. Com maior frequência de queimadas, a vegetação perde a capacidade de recuperação. Outro fator preponderante é o processo de mudança climática — também alimentado pelo homem —, que faz com que o cerrado fique cada vez mais quente e seco.
A bióloga Mercedes Bustamante, uma das principais referências em cerrado e membro da Academia Brasileira de Ciências, conta que o reflexo afeta toda a cadeia do bioma. "Como o fogo é um fator natural no cerrado, havia a percepção de que os impactos de mudanças no regime de fogo no bioma não seriam tão impactantes. No entanto, estudos científicos demonstram que queimadas mais frequentes têm impactos negativos sobre árvores e arbustos, contribuem para as emissões de gases de efeito estufa e podem impactar a qualidade de ambientes aquáticos", diz.
"Também temos que considerar que ecossistemas como matas ciliares e de galeria, e áreas úmidas são muito sensíveis ao fogo, e sua degradação compromete significativamente a conservação de recursos hídricos", complementa Mercedes.
As queimadas também são devastadoras para a fauna. Primeiro, com a morte direta dos animais em decorrência do fogo. Depois, as consequências são a desidratação, a exposição a predadores e as restrições alimentares. Por fim, os sobreviventes ficam dispersos em outras áreas e tendem a ficar entocados. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, estima-se que 137 espécies conhecidas de animais do bioma estão ameaçadas de extinção.
Segundo o Inpe, entre os principais problemas oriundos das queimadas estão a perda de patrimônio socioambiental e cultural, como as áreas de uso familiar ou coletivo atingidas pelo fogo, as faixas de florestas e de cerrado que representam habitats para muitas espécies animais e vegetais, e sítios arqueológicos ainda desconhecidos por instituições de pesquisa e comunidades do entorno.
A bióloga Jéssica Schüler reforça: o que já é grave pode ficar ainda pior com as mudanças climáticas, que resultam em maiores temperaturas, redução da quantidade e volume de chuvas e ocorrência cada vez maior de eventos extremos, com incêndios florestais em grande escala, como os que têm sido registrados nos Estados Unidos e na Europa nos verões do Hemisfério Norte.
Para Schüler, a conta já está chegando e vai além dos impactos no meio ambiente. "No longo prazo, queimar nossos ecossistemas é queimar nosso potencial econômico. As projeções climáticas até 2100 mostram que a produção agropecuária não será sustentável em grande parte do território nacional", vaticina.
Por mais que o cerrado tenha uma relação íntima com o fogo — fator natural do bioma —, as queimadas em excesso devem ser combatidas. Na visão de Bustamante, o principal é ter políticas bem desenhadas e fundamentadas na ciência para contenção do problema, além da atuação dos órgãos ambientais para um manejo adequado do fogo considerando os diferentes tipos de vegetação.
Letícia Schüller reforça a opinião de que os problemas causados pelos incêndios florestais são mundiais, mas as maneiras de mitigá-los precisam vir de políticas governamentais específicas. "Cada país ou bioma precisa criar o seu próprio sistema de monitoramento e fiscalização, pois os provocadores desses incêndios são diferentes entre as regiões. Porém, o Brasil tem destinado uma quantidade mínima de recursos para financiar essas ações de combate e prevenção", explica ela.
Em uma cartilha, o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) reforça alguns pontos de cuidado e atenção para a população. Entre eles, sempre tirar o mato ao redor dos pontos em que serão acesas fogueiras ou velas e, ao fim, apagar as brasas com água ou terra; manter fósforos e isqueiros fora do alcance das crianças; apagar as bitucas de cigarro e jamais descartá-las em ambientes florestais; fazer aceiros ao redor de casas, currais, celeiros, armazéns e galpões; manter os aceiros sempre bem roçados e; se for fazer uma queimada controlada, que a faça no fim da tarde ou no início da manhã, sempre com a autorização dos órgãos ambientais.
O Ministério do Meio Ambiente divulgou que adota medidas para a preservação do cerrado. Entre elas estão o controle de queimadas irregulares e incêndios florestais e a contabilização de emissões de gases de efeito estufa.
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