O caso do estupro de uma mulher durante o parto por um anestesista revela uma sequência de desrespeitos aos direitos das parturientes e, em última instância, um sistema médico doente.
É o que diz a médica ginecologista e obstetra, membro da rede feminista de ginecologia e obstetrícia e professora da Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba Melania Amorim.
Para a médica, chamar o acusado de “monstro” é uma forma de finalizar o debate sobre a necessidade de combater a misoginia no atendimento ao parto.
Leia a seguir trechos da entrevista:
Além do crime hediondo que ocorreu na sala de parto, a senhora vê outros problemas no caso?
Há uma série de absurdos: ela não estava com o acompanhante, sedar não é necessário na maioria das vezes, e se o bebê estava bem não deveria ter sido precocemente separado da mãe. Tive a impressão que ela estava amarrada, mas não tenho certeza. Amarrar parturientes à mesa é do tempo que se fazia anestesia geral, uma ideia bem antiga que não se sustenta, mas ainda acontece.
É raro esse tipo de desrespeito aos direitos ocorrer?
Há diretrizes de assistência ao parto e à cesariana. Nem amarrar, nem sedar, nem deixar ela sozinha. Não há motivo para separar a mãe de um bebe saudável, que deve ser amamentado na primeira hora de vida. E não é porque é bonitinho, são diretrizes baseadas em evidências cientificas sólidas. Mas esses direitos são negados com tanta frequência que é banal que não aconteça e ninguém questiona.
E a paciente nem tinha condições de se manifestar.
O que me chama atenção é: como ninguém nem olhou para essa parturiente? Ninguém se perguntava por que ela não estava conversando, por que estava sedada assim? Que solidão estaria sentindo se estivesse acordada com uma equipe totalmente indiferente. Nem olham para aquela mulher, como se ela fosse só um corpo, vísceras, e não como uma pessoa que está num momento único, dando à luz.
As enfermeiras deveriam ter lidado com as suspeitas de forma diferente?
Com certeza precisavam ter uma prova consistente. As enfermeiras já estavam desconfiadas, mas na hierarquia hospitalar precisavam de mais. O sistema está sempre protegendo os homens e o médico homem branco cis domina.
Números do Instituto de Segurança Pública (ISP), obtidos pelo Globo, mostram que, só no Rio, há um estupro em hospital a cada 14 dias. A violência nos hospitais é frequente?
Estupro e maus tratos no meio médico são realidade. Esse não é um caso isolado, e quando a gente “monstrifica”, diz “aquele homem é um monstro”, liquida o assunto e deixa-se de refletir sobre o problema. E o problema é que o modelo de assistência ao parto e a formação médica como um todo é doente. Precisamos de uma medicina centrada na pessoa, menos misógina.
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