Comoção nacional com o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips. Este é o fato. O que nos comove? A floresta devastada? Os povos originários? A ausência do Estado? A morte de Bruno? A morte de Dom?
A comoção, assim como o amor, a generosidade, o respeito e tantos outros sentimentos, tem origem na identidade, na capacidade de se sentir igual ao Outro. A identidade se faz acompanhar da pergunta: Podia ser eu? Tenho identidade com ele, Bruno, antropólogo, e com Dom, jornalista. Quanta coragem, quanta qualidade humana Bruno e Dom expressam.
Hoje, os povos originários e a floresta repercutem no coração de muita gente, especialmente no coração dos jovens. Identidade é a palavra.
Um pouco de história: Em 500 anos de história e, 200 anos de país independente, nós, brasileiros, não fomos capazes de compor um tecido social com lugar para populações originárias, com seus usos e costumes.
Quais foram as políticas de Estado desenvolvidas com relação às populações indígenas?
Do século 16 até o século 19 as políticas se caracterizaram pelo extermínio das populações originárias e, em alguns casos, integração mediante a apropriação de suas terras, seguida de escravidão e conversão forçada. A ideia de progresso e modernização, com foco em uma forma de vida denominada “civilizada” (Ocidente civilizado), justificou a destruição de inúmeras comunidades indígenas favorecendo sua marginalização e pauperização.
No século 20 as políticas levadas à frente pelo Estado colocavam os povos em situação inferior. Eram tutelados pelo Estado, dispondo de poucos mecanismos para preservar sua cultura. Somente com a constituição de 1988 a condição de povos tutelados foi alterada, dando-se a eles a cidadania necessária para a atuação política em razão dos seus próprios interesses.
O golpe civil-militar de 1964 manteve como política voltada para os povos originários a integração destas populações ao território nacional, mediante a imposição de usos e costumes, próprios das tradições Ocidentais. Os indígenas eram tutelados pelo Estado e considerados incapazes de gerenciar a vida de suas comunidades e preservar o território brasileiro.
O Estado brasileiro na época da ditadura militar (1964-1988), diferentemente do Chile e da Argentina, desenvolveu um instrumento peculiar para combater opositores: uma legalidade autoritária, especializada em utilizar instrumentos administrativos para isolar, desempregar e silenciar pessoas. O Estado escolheu como tática política, para alcançar seus objetivos, o Direito Administrativo, adequando-o para aplicações da lei de forma legal, mas ilegítima. Anthony Pereira, em seu livro Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, Chile e na Argentina, analisou, em detalhe, a questão.
A forma de atuação do Estado brasileiro, legal, mas ilegítima, não eliminou mortes e desaparecimentos, uma estratégia complexa e de grande importância foi arquitetada para combater e silenciar a oposição a curto, médio e longo prazo. Os instrumentos, então desenvolvidos pelo Estado brasileiro, para combater as oposições têm se demonstrado adequados, hoje, para corroer as estruturas dos Estados Democráticos de Direito. Trata-se do vírus que corrompe as democracias.
Agencias de informação: No Brasil da década de 70, coube as agências de informação mapearem com precisão pessoas e instituições capazes de desfavorecer, de colocar em questão as políticas em curso, desempenhadas pelo governo militar.
A política levada à frente pelo regime autoritário instalado com o golpe de 1964 mantinha a aparência de legalidade, favorecendo uma narrativa de que toda a ação do Estado era legitima. Nos anos 1960 e 70, os instrumentos utilizados para perseguir e desmobilizar os opositores ao regime militar iam desde: a ausência de verba para um contrato, passando pela lei eleitoral, pela suspensão das propostas de contratação, até a supressão de determinados contratos temporários, a morosidade no andamento de processos até o decurso de prazo para a sua implantação, entre outros. Analisei muitos processos destes tipos, ao realizar os relatórios da Comissão da Verdade da USP.
Foram rastreados, nos Arquivos do DOPS e Arquivo Nacional, os informes do Serviço Nacional de Informações (SNI), onde observamos a montagem de um Serviço de Inteligência com dimensões nacionais, do qual faziam parte Exército, Marinha e Aeronáutica. Os instrumentos mobilizados na perseguição legitimavam o ato arbitrário em sua gênese, sob roupagens aparentemente legais, que visavam à obtenção e a concordância da sociedade, favorecendo a consideração de que se estaria diante de um Estado em perfeito funcionamento institucional.
A exoneração de Bruno: A exoneração de Bruno da Funai, o seu assassinato com Dom Phillips e o desmonte planejado de inúmeras instituições públicas, voltadas para o meio-ambiente, chamaram a minha atenção de historiadora.
A clareza de propósitos do governo atual, a eliminação ou retirada da floresta das populações indígenas, com vistas a uma integração forçada dos povos originário, são exemplos de práticas que estão em curso com base em mecanismos anteriormente utilizados.
Quais são os mecanismos utilizados para a obtenção destes resultados?
Elaboro algumas hipóteses, depois de muitas leituras de antigos documentos. Velho hábito de historiadores.
Em época de guerra, uma das importantes linhas de ação para abater o inimigo é o controle das linhas de abastecimento e o incentivo aos conflitos entre opositores. Observem:
1. Controle da pesca e mineração em terras indígenas pode ser útil. Sem peixes e sem caça, as comunidades de índios isolados não vivem;
2. O mercúrio nas águas dos rios prejudica a saúde dos indígenas justificando deslocamentos de populações originárias de áreas contaminadas;
3. Sem demarcação de terras ou sem floresta em pé os povos originários não vivem, morrem.
Como um Estado de Direito, respeitando a constituição, que garante o direito dos indígenas às suas terras, pode atuar de forma legal, mas ilegítima, para excluir da floresta os povos originários, os antropólogos, os jornalistas e as instituições voltadas para a sua preservação?
Diminuindo a comida, estimulando os conflitos e o medo. Como?
1. Fazendo vista grossa para o crime organizado e para os conflitos gerados entre a população pobre e ribeirinha com os indígenas, atendendo-se com isso poderosos interesses locais vinculados, no caso em questão, à pesca ilegal.
2. Contaminando os peixes. Como? Fazendo vista grossa para as dragas, para o uso do mercúrio e deixando de vigiar a extração ilegal do ouro.
3. Deixando para o legislativo a decisão entre queimar ou devolver ao praticante do crime os objetos utilizados na extração do ouro, de grande valor na região, sem que haja autorização para, por exemplo, a queima de dragas, motores, motos utilizadas para levar gasolina e outros produtos necessários para a prática de ilícitos para garantir a repetição do crime.
Mais uma vez, na história brasileira, encontra-se uma forma de atuação legal, mas não legítima.
Enfraquecimento das instituições voltadas para o meio-ambiente: Como os objetivos são alcançados?
Desqualificando, retirando das instituições, exonerando, indivíduos atuantes na preservação do meio-ambiente, na saúde e na educação. O procedimento envolve também acirrar as contradições, no interior das instituições, mediante troca de cargos e reorganização da hierarquia, colocando pessoas experientes sob o comando de indivíduos desligados ou contrários aos objetivos das instituições. É legal. Mas, não é justo, nem legitimo. Serve aos objetivos maiores do governo em questão.
Tudo isto já ocorreu no Brasil, a partir de 1971, quando foi criado um Plano Setorial de Informações. A diferença é que naquela época, em razão dos Atos Institucionais e de não haver Habeas Corpus, o executivo dispunha de maior facilidade para a manipulação dos instrumentos legais (mas ilegítimos) para chegar aos seus objetivos.
Agora, em época de pleno funcionamento do Estado de Direito, a estratégia do governo tem, como foco, o acirramento das contradições entre os povos indígenas, os pescadores, os caçadores, os garimpeiros e os madeireiros, destruidores dos rios e florestas com participação do legislativo. Objetivo: controle à sua moda do território e das populações indígenas evitando a participação da sociedade civil.
Para alcançar estes objetivos os instrumentos são:
A fome é arma de guerra.
A ausência de combate ao crime organizado é arma de guerra.
O desmantelamento das instituições voltadas para a preservação das vidas e da floresta, mediante a desmoralização e a desarticulação das (raras) pessoas movidas pela coragem e integridade ética capazes de lutar pelos povos originários e pela floresta. Esta é a mais possante arma de guerra.
A comoção, fruto de identidade com Bruno, Dom e povos da floresta, no Brasil e no exterior, é gota de esperança por um mundo melhor.
Para Bruno e para Dom, com carinho.
*Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
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