Sete de cada dez alimentos consumidos pela população brasileira são produzidos pela agricultura familiar. Ainda assim, durante a pandemia, o setor não foi considerado prioridade nos mercados institucionais geridos pelo poder público.
Sofrendo quedas gradativas no orçamento, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), extinto em 2021, executou via Conab, em 2020, apenas na região Nordeste, R$ 99 milhões.
O valor só foi superior aos R$ 13 milhões executados em 2019, graças a um acréscimo de R$ 500 milhões oriundos da MP 957, conhecida como PAA Emergencial, fruto da mobilização da sociedade civil organizada. Com este recurso, o orçamento total previsto para o ano ficou em R$ 660 milhões, incluindo emendas parlamentares, dos quais apenas R$ 330 milhões foram executados via Conab e outras fontes, e a diferença não foi aproveitada, uma vez que não foi lançada pelo governo como restos a pagar.
“Se tinham R$ 660 milhões e foram gastos R$ 330 milhões e a outra metade não foi registrada como restos a pagar, podendo ser executada no ano subsequente, então, eu vou considerar que este recurso se perdeu. Se não tem empenho, não tem mais recurso”, explica o professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Sílvio Porto.
Na comparação entre os orçamentos executados no Nordeste via Conab, em 2012, que foi de quase R$ 155 milhões com o do ano de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, R$ 13 milhões, a queda chega a 90%. A redução foi sentida na pele pelas famílias agricultoras da Associação Comunitária de Moradores e Agricultores do Sítio Queimadas, do município de Feira Nova, no Semiárido pernambucano. A última vez em que a Associação executou um projeto pelo PAA foi em 2017.
Desde então, as propostas apresentadas foram recusadas “porque o valor do projeto era muito alto e o orçamento [do programa] era pequeno”, explica o tesoureiro Sandalo Manoel Santana. “A única venda que fizemos na pandemia foi de R $10 mil em farinha de mandioca para o Serta, instituição que trabalha aqui. O PAA era algo que dava esperança ao agricultor de continuar no campo”, afirma, saudoso, Sandalo.
“A razão [para esta redução] é política. Não há prioridade em relação ao Programa”, critica Sílvio Porto, referindo-se ao contexto atual, marcado pelo fim de instâncias de participação popular. “Em 2012, a participação social tinha mais espaço de incidência política. O Consea tinha uma participação muito forte na discussão sobre segurança alimentar da qual o PAA, as cisternas e o próprio Pnae faziam parte. Hoje, o Consea não existe mais, o governo não tem uma interlocução com a sociedade civil”, reforça Sílvio Porto.
Novos mercados - A União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) do Rio Grande do Norte, composta por 12 cooperativas, sofreu de imediato as consequências da pandemia na receita. Suas vendas para o PAA institucional foram reduzidas em função do isolamento social, que também diminuiu a demanda por alimentos.
Na modalidade PAA via Conab, apenas a Cooperativa Potiguar de Apicultura e Desenvolvimento Rural Sustentável (Coopapi), membro da Unicafes/RN, executou uma chamada de compra com doação simultânea do ano de 2019. Nenhuma das outras onze cooperativas conseguiu comercializar, pois segundo a presidenta da União, Fátima Lima, “não teve orçamento”. Já o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) parou por completo.
Algum tempo depois, surgiu o primeiro caminho com a aprovação da Lei 10.536/21, que criou o Programa Estadual de Compras da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Pecafes). A ação destina no mínimo 30% do orçamento para compra de alimentos da agricultura familiar. Assim, a Federação forneceu 70 mil kits, totalizando R$ 2 milhões e 100 mil. “Essas vendas são importantes porque a comercialização é direta. O quilo do arroz, por exemplo, foi vendido por R$ 6, se fosse para o atravessador, sairia por R$ 4,50. Essa diferença de R$ 1,50 é a margem de lucro”, explica Fátima Lima.
Outra fonte de comercialização surgiu através da Fundação Banco do Brasil, que adquiriu 7 mil cestas básicas com produtos da Unicafes/RN. Cada cesta custou R$ 149 mais 5% do valor total para custos com logística. A Unicafes comprava os itens direto das famílias agricultoras, montava as cestas e entregava à Fundação.
Já o Pnae, segundo Fátima, foi retomado no início do segundo semestre de 2020, na modalidade de entrega de kits escolares, em resposta aos protestos da sociedade civil. "Começaram a incluir os produtos da agricultura familiar nos kits de produtos específicos, ou seja, kit de farinha, kit de polpa. Então, quando saía um kit de farinha, quem vendia arroz ficava de fora. Já os produtos in natura, foi uma luta para incluir, porque diziam que não tinham estrutura para conservar ”, explica.
Negociação corpo a corpo - Na região Norte de Minas Gerais, a Cooperativa Grande Sertão perdeu todas as vendas do Pnae, paralisadas com a suspensão das aulas. Neste momento, conta o gerente Administrativo - Financeiro, Arlúcio Almeida, as famílias cooperadas sobreviveram apenas do auxílio emergencial, usado para a compra de alimentos. “Alguns estados e municípios continuaram entregando cestas, porém, não inseriram os produtos da agricultura familiar porque não era prioridade”, enfatiza.
As vendas ficaram paradas ao longo de todo o ano de 2020 e só foram retomadas em julho, a partir de negociações com as entidades executoras. Cerca de 40 toneladas de polpa, que atenderiam aos contratos, foram desperdiçadas. Algumas dessas polpas foram doadas ao projeto Mesa Brasil do Sesc para minimizar o prejuízo.
Com uma redução significativa no orçamento, a Grande Sertão ainda seguiu executando algumas vendas pelo PAA Institucional para o Exército e o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Norte de Minas Gerais. “Nesta pandemia, a maior dificuldade foi a falta de interesse das entidades executoras em inserir os produtos da agricultura familiar.”, destaca Arlúcio.
Ele explica ainda que o município de Nova Lima, localizado na região Metropolitana de Minas Gerais, o primeiro a inserir os produtos da agricultura familiar nos kits, “foi uma porta que se abriu. Em seguida, outras portas se abriram na região Norte, que tem cerca de 100 escolas”, relembra. A vontade de assegurar as vendas era tanta, que a cooperativa inovou no beneficiamento, entregando em vez da polpa, o suco já pronto para o consumo. “Foi uma exigência do município de Montes Claros, para evitar a presença de pessoas produzindo sucos na escola nos momentos mais graves da pandemia”, explica.
E agora? - Silvio Porto acredita que a mínima institucionalidade da agricultura familiar foi retirada no governo atual. “Com exceção do Pronaf, quase tudo foi perdido. Em relação ao Pnae, eu responsabilizo o Governo Federal, mas também os estados e municípios, uma vez que foi aprovada uma lei, garantido a execução do programa na pandemia e, mesmo assim, muitos não compraram da agricultura familiar. Para o Governo Federal, [a não execução dos recursos] é muito bom, pois significa fazer caixa”, observa.
Some-se aí a paralisação do Programa Cisternas, que em 2021, obteve o menor número de tecnologias construídas, 4.300. É importante destacar que, na área rural do Semiárido, o acesso à água está diretamente ligado ao aumento e à diversificação da produção alimentar. Este resultado foi ressaltado na pesquisa VIGISAN sobre a fome na pandemia, que constatou que nos lares sem acesso à água, os casos de fome dobraram de quase 23% para quase 46%.
A cisterna de 52 mil litros ou cisterna de segunda água, destinada à produção, também não ganhou prioridade no governo atual. Enquanto em 2014 foram implementadas 42.307 unidades, em 2019, foram entregues apenas 5.232. “Para mim, essa redução do Programa Cisternas é o mais grave, pois se tivesse acesso à água, a família poderia manter ao menos um quintal produtivo. Então desmontar o que a ASA vinha fazendo e os programas de vendas institucional é apostar no caos”, critica Sílvio.
Um longo caminho a seguir - A aquisição dos alimentos da agricultura familiar para o Pnae, após mobilizações e diálogos, mesmo em estados nos quais há abertura para a participação social e experiências de apoio à agricultura familiar, a exemplo do Rio Grande do Norte e da Bahia, revelam um longo caminho a ser percorrido. Na avaliação de Sílvio, os canais de compra surgidos de forma emergencial, na pandemia, são passageiros e devem deixar o setor na mesma situação delicada.
“Os canais de vendas criados de forma emergencial, quando passar a pandemia, vão acabar. A ação da Fundação Banco do Brasil foi muito importante neste momento, mas é paliativa. Já o PAA Institucional, geralmente tem baixa escala e muita diversidade, ou seja, há um desajuste em relação à quem fornece os produtos. As respostas não solucionam estruturalmente o problema das famílias agricultoras”, arremata Sílvio. Com a experiência de quem conquistou mercado por mercado na negociação corpo a corpo, o agricultor e representante da Cooperativa Grande Sertão, Arlúcio Almeida, sentencia: “Os gestores precisam ter uma mente aberta e compreender o papel da agricultura familiar”.
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