O presidente Jair Bolsonaro disse nesta quarta-feira (16) que o governo federal pretende alterar o status de "pandemia" da Covid-19 para "endemia" até o final de março. Ele sinalizou que o ministro da Saúde está em busca de apoio de representantes de outros poderes para "flexibilizar o estado de emergência sanitária".
Endemia é o status de doenças recorrentes, típicas, que se manifestam com frequência em uma determinada região, mas para a qual a população e os serviços de saúde já estão preparados.
"A tendência é do Queiroga, que é autoridade nesta questão, e tem conversado na Câmara de Deputados, parlamentares, também o Supremo, que é o órgão federal. A ideia é que até o dia 31, é a ideia dele, passar de pandemia para endemia e vocês vão ficar livres da máscara em definitivo", disse Bolsonaro.
Em seu perfil no Twitter, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), confirmou ter recebido Queiroga e disse que manifestou "preocupação com a nova onda do vírus", mas que iria conversar com os líderes do Senado sobre a intenção do ministro.
Segundo a lei Lei 13.979/2020, que trata de medidas de enfrentamento da pandemia, um "ato do Ministro de Estado da Saúde disporá sobre a duração da situação de emergência de saúde pública" sobre o qual trata a legislação.
Especialistas entrevistados pelo g1 avaliam que a mudança de pandemia para endemia é uma decisão complexa, e para a maioria, a decisão seria precipitada se ocorresse no atual cenário:
- A variante ômicron ainda está em circulação e tem alta taxa de transmissibilidade
- Ainda se sabe pouco sobre a nova sublinhagem da ômicron, a BA.2, o que gera incerteza sobre um novo pico nos próximos meses;
- Além disso, o enfrentamento da ômicron exige uma alta taxa de vacinação e, mais do que isso, doses de reforço. Apenas o estado de São Paulo tem mais de 50% da população com 3 doses;
- Em comparação com outras endemias já caracterizadas no país, como a dengue, o número de mortes e casos ainda é muito superior, o que não estaria de acordo com o status endêmico;
- Previsões anteriores – das mais otimistas às mais pessimistas – falharam com a Covid-19. Cravar que estamos prontos para virar a página pode ser mais uma expectativa frustrada, avaliam os especialistas.
Qual é o cenário atual?
Com relação ao número de casos do coronavírus, a média móvel reduziu para abaixo de 50 mil por dia. Em 2022, a média chegou a ultrapassar a marca de 180 mil, maior taxa da história da Covid-19 no país.
"Entramos num período de declínio dos casos, mas que significa que provavelmente estamos entrando em um período de calmaria, ou seja, o coronavírus foi contido neste período, mas é arriscado dizer que a pandemia chegou ao fim", disse Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Universidade Federal do Ceará.
Além disso, a média móvel de mortes no país também está com tendência de queda e ficou abaixo de 400 nesta terça-feira (15).
Por outro lado, o número de infecções e hospitalizações voltou a subir em países da Europa e Ásia, o que acendeu o sinal vermelho no Brasil. Em outros momentos da pandemia, o vírus voltou a agir com força em outros continentes e, sem seguida, avançou novamente na América Latina.
Em diferentes momentos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) - que decretou o status pandêmico em nível global há mais de dois anos - disse que o cenário é desigual entre os países e que a pandemia está longe de acabar.
"Cada país está enfrentando uma situação diferente com desafios diferentes, mas a pandemia não acabou", disse Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, nesta quarta-feira (16).
Risco de novas variantes
Além do avanço repetitivo e circular em outros países, nada garante que uma nova variante não chegará ao Brasil. As que já existem, como a BA.2, uma sublinhagem da ômicron, ainda estão à espreita e com estudos em andamento ou pouco conclusivos sobre sua transmissibilidade.
Segundo Camila Romano, pesquisadora do Laboratório de Investigação Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, ainda estamos em fase de "experimentar" o surgimento das versões do vírus.
"Há um estudo em Israel em que eles sugerem que a BA.2 escapa mais da imunidade prévia do que as outras variantes. Eles acham isso porque existem indivíduos que foram infectados pela BA.1 [primeira versão da ômicron] e pouco tempo depois também foram infectados ela BA.2", disse a especialista Camila Romano.
Um dos destaques do estudo é que o intervalo de tempo em casos de reinfecção de pacientes com as duas sublinhagens da ômicron foi inferior ao relatado entre outras versões do vírus.
"Isso não acontece depois de uma infecção com a delta e o contato em seguida com a primeira versão da ômicron. A pessoa fica uns três ou quatro meses de imunidade depois da infecção. Mas existem mais controvérsias em relação à BA.2. Outros estudos da OMS dizem que o problema, na verdade, são as regiões com baixa imunização, e foi por isso que ela chegou fazendo seu lugar. Ainda não dá pra tirar uma conclusão, não é um consenso. Cada país está se comportando diferente", explica Romano.
"A minha mensagem seria tomar um pouco de cuidado com um otimismo preguiçoso: 'não tem o que fazer mesmo, e vida que segue'. Não é porque é endêmica que ela não vai mais matar, que não vai surgir uma variante nova. Simplesmente rotular a Covid como endêmica pode passar a impressão de que a situação está controlada", complementa Romano.
Escape da vacina
Em outro ponto da análise dos especialistas está o fato de estamos em uma nova fase da vacinação no Brasil: mais de 73% receberam as duas doses, uma conquista convertida em uma proporção de óbitos menor do que a vista em 2021.
No entanto, a ômicron tem um escape maior em relação às vacinas disponíveis, principalmente após alguns meses de aplicação da segunda dose. A taxa de vacinação de reforço está muito aquém do necessário para barrar o avanço de novos casos.
Dados do consórcio de veículos de imprensa com base nas Secretarias Estaduais de Saúde apontam que apenas São Paulo e Paraíba estão com mais de 50% dos adultos com três doses. Os estados do Amapa, Acre, Maranhão, Pará, Roraima e Tocantins têm uma taxa inferior a 30%.
Não se compara a outras endemias
O impacto da Covid-19 é muito mais alto do que outras endemias no país.
A comparação com a dengue é inconsistente porque são doenças diferentes. Mas, ao ignorar as inconsistências, os números são ainda mais expressivos: a dengue matou 230 pessoas entre 1º de janeiro e 4 de dezembro de 2021. Mesmo em 2019, quando o Brasil registrou 1.544.987 casos de dengue, com um aumento de 488% em relação a 2018, 782 pessoas morreram pela arbovirose.
"Acho que nosso objetivo não tem que ser "alcançar" a dengue ou a febre amarela. Nosso objetivo tem que ser impedir novas pandemias, como esta e outras recentes", disse Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
"Temos que parar com a destruição do nosso planeta. Ele está atingindo um nível a partir do qual será difícil o retorno. Desde 1940, a OMS alerta sobre a possibilidade de ocorrência de pandemias como estas. Vejam a lista de outras doenças “endêmicas” que ocorreram de forma epidêmica ou pandêmica e que também têm como causa a destruição das matas: HIV, Mers, Sars, dengue, chikungunya, zika, e agora a Covid-19", completou.
É bom aprender com o passado
Alves, Romano e Kerr afirmaram que a Covid-19 ainda é imprevisível. Outras previsões foram feitas anteriormente e não se confirmaram. Mudar o status para endemia poderia causar uma impressão de estabilidade e, segundo eles, ainda é cedo para isso.
"Quando a delta entrou no Brasil, muitos avaliaram que seria um verdadeiro desastre. Não foi. Provavelmente, o que segurou o 'desastre da Delta' foi nossa grande exposição anterior e recente a uma variante similar, em muitas mutações, à própria delta e uma taxa de imunização em crescimento. Nós nos saímos muito melhores que os EUA e outros países ricos da Europa neste processo", explicou Kerr.
A vice-presidente da Abrasco aponta que, com a disseminação "explosiva" da ômicron e as taxas mais elevadas de imunização alcançadas, a população deve estar com um quadro de imunidade alta. "Isto deve segurar novas infecções em futuro próximo. Se não aparecer nenhuma variante neste período, pode ser que tenhamos períodos de calmaria", avalia.
A especialista explica que, apesar da alta probabilidade de "endemização", isso não é necessariamente uma coisa positiva.
"Significa que viveremos anos com a Covid-19, com algumas epidemias mais localizadas. Os grupos mais vulneráveis, idosos, pessoas com comorbidade, ficarão precisando se proteger com vacinas e máscaras até uma avaliação contínua da situação epidemiológica".
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