Agostinho de Hipona dizia que só temos o presente para viver. Hoje, principalmente entre os jovens, esse apelo hedonista soa bastante convidativo, afinal, o que importa é sentir a vida, intensamente, “amar como se não houvesse amanhã", como no verso do poeta que morreu precocemente. No entanto, a elaboração de Santo Agostinho sobre o tempo é um pouco mais complexa do que nossa vã sabedoria pode traduzir em um post de 140 caracteres.
Há três presentes para viver e não apenas um. Há, sim, o presente do presente, que é o mundo da percepção, que nos dá a referência das coisas: grande, pequeno, longe, perto, quente, frio, doce, amargo, e por aí vai. Mas há também o presente do passado, que é a memória, que nos fornece o conteúdo das coisas, dando a elas sua consistência, seu estofo, sua espessura.
Quando sentimos um aroma e nos emocionamos, não é a percepção que emociona, mas a memória. Quando assumimos uma postura diante de algo, a defesa de uma causa, não é o presente do presente que decide, mas a longa cadeia de histórias conhecidas e compartilhadas que chegam até nós e nos sopram aos ouvidos a mensagem dos que morreram e não podem ser esquecidos. Se a percepção dá a referência das coisas, é o conhecimento do passado e da trama de histórias que o compõe que nos dá o sentido das coisas. E é o sentido que nos move para um lado ou para o outro, que permite nossas decisões em relação às coisas. O carpe diem é um chamado tão sedutor como é o canto das sereias, que nos leva, cegos de vontade de tocar e sentir e curtir, para as pedras que nos destruirão.
E há ainda nesse presente que é tudo o que temos para viver, o presente do futuro, que é a promessa, isto é, o desejo manifesto e compartilhado de estar em um lugar em um tempo com alguém. Ao firmarmos esse compromisso (que é, literalmente, dividirmos entre nós uma promessa), definimos nossa presença em um tempo que não existe, mas que nos afeta porque mobiliza os nossos esforços para que ele se cumpra.
É desse fluxo de presentes que interagem e se completam que somos feitos, momento a momento, realizando nossa existência. Como afirmava Lacan, temos o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de decidir. A percepção, que é o presente do presente, sozinha, não é capaz de garantir a mínima condição de uma existência plena. Só com o material do passado acumulado, refletido e assumido, é que podemos compreender o sentido das coisas que vemos e dar sentido às coisas que escapam às nossas nomeações, mas que, igualmente, nos definem como pessoas que estão e querem estar no mundo hoje, amanhã e por mais algum tempo.
Quando os eventos caem sobre nossa cabeça - um golpe de estado, uma guerra devastadora, um desastre natural com fortes implicações sociais - buscamos saber por que as coisas ocorreram assim e não de outro jeito. Nesse momento, como um susto, compreendemos que, sem um passado organizado pela narrativa de um especialista, ficamos perdidos em meio a um nevoeiro ou uma densa nuvem de poluição. Estamos ali, percebemos nossa presença, mas não temos conhecimento sobre o que se passa, porque não somos capazes de ligar os pontos e tecer a trama que forma a corda que nos associa aos outros. Como um Teseu largado em meio ao labirinto por uma Ariadne que esqueceu da razão e da importância de segurar o novelo, viver o presente do presente é o exercício mais evidente da alienação, que é a perda do mundo, das suas conexões, dos seus sentidos e dos seus propósitos. Só a educação pela História pode nos salvar de elogiar a guerra, os tiranos, os administradores corruptos e negligentes. Só a educação pela História pode resgatar nossa capacidade de fazer promessas e criar futuros dignos. Para todos nós.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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