Trabalho análogo à escravidão pode ser maior do que mostram os números de 2021

15 de Feb / 2022 às 15h00 | Variadas

O Brasil registrou uma grande subida nos números de suspeitas e casos de trabalho análogo à escravidão no ano passado. Mas especialistas queixam-se da falta de recursos e temem que a situação seja muito pior.

O número de denúncias registradas no Ministério Público do Trabalho subiu 70% em relação a 2020, chegando a 1.415, o maior dos últimos seis anos.

Pelo Disque 100, o aumento foi ainda maior: as denúncias mais do que duplicaram, de 915 em 2020 para 1.906 no ano passado. A subida ocorre no mesmo ano em que o Brasil registrou o maior número de resgates de pessoas em situações análogas à escravidão desde 2013. Foram 1.937 pessoas resgatadas. Em 2020, tinham sido 936.

"Nós temos muito mais trabalhadores em situações análogas à escravidão do que os 1.900. O que não temos são condições de fazer as fiscalizações, se tivéssemos mais auditores, mais orçamento e mais apoio teríamos muito mais trabalhadores resgatados", afirma o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait) e coordenador da superintendência Regional do Trabalho em Pernambuco, Carlos Silva. "Nós tivemos um aumento das denúncias exatamente por conta da pandemia'', completa.

O professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do tema Sérgio Sauer atribui os números à situação econômica vivida pelo país, que atinge especialmente os mais pobres e vulneráveis. "Eles aceitam qualquer trabalho e, ao chegarem no local ou com o passar do tempo, vai se tornando clara a situação de exploração", explica. Em 2021, o Brasil bateu o recorde de 14,7% de desempregados, que atingiu 14,8 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O país terminou o ano com a quarta maior taxa de desemprego entre as principais economias do mundo, de acordo com ranking da agência de classificação de risco Austin Rating.

O professor de economia da UnB Evilásio da Silva Salvador também cita outros fatores que podem ter contribuído para este aumento, como a flexibilização na legislação trabalhista e o aumento da fome. "Muito provavelmente há uma subestimação das informações. O censo está atrasado há dois anos, então, não temos muitas estatísticas", enumera.

No ano passado, chegou-se a um número recorde de 447 locais inspecionados por suspeita de trabalho análogo à escravidão. Houve operações em todos os estados. O governo gastou R$ 2,8 milhões na fiscalização, segundo dados enviados ao Correio pelo Ministério do Trabalho, por meio da Lei de Acesso à Informação. Só em 2013 tinha havido um investimento parecido.

Especialistas e profissionais que atuam na fiscalização dizem, no entanto, que os números têm de ser vistos no seu contexto. Segundo Carlos Silva, do sindicato dos auditores fiscais, o resultado das fiscalizações foi possível devido a um empenho das equipes, realocação de auditores e uma organização dos trabalhos por parte da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (Detrae/ SIT). "No ano passado, a Detrae organizou uma operação nacional, em alusão à semana nacional de combate ao trabalho escravo, em que todas as superintendências tiveram que fazer uma operação", afirma. "Em janeiro, vários auditores de outras áreas foram fazer fiscalizações", acrescenta.

O auditor fiscal Magno Riga também atribui o alto número a uma maior demanda, especialmente desde o segundo semestre de 2021 — não apenas denúncias, mas também informações vindas dos órgãos parceiros, como polícias, Ibama, ICMBio. "Nos 'viramos nos 30' para atender à demanda crescente", afirma.

Segundo Carlos Silva, a área do trabalho análogo à escravidão não tem um orçamento próprio desde 2013 e isso sempre põe em risco a continuidade das ações. "O orçamento para fiscalizações não é protegido. Nós temos um montante que se mistura com toda a inspeção do trabalho. Todos os anos, quando tem contingenciamento, o orçamento da fiscalização é cortado. É sempre uma decisão política", explica.

De acordo com dados levantados pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundo Público, Orçamento, Hegemonia e Políticas Sociais da UnB, a pedido do Correio, o orçamento para inspeções trabalhistas só correspondeu a 0,03% dos gastos federais com trabalho em 2021. As verbas efetivamente aplicadas na fiscalização do trabalho escravo são baixas e compostas, em sua maioria, por gastos com seguro desemprego dos resgatados, segundo o professor Evilásio da Silva, líder do núcleo e especialista em orçamento público.

Ele destaca que a melhora observada em 2021 nos gastos, provavelmente, seja um reflexo da retomada econômica do país, com as viagens voltando a ocorrer, por exemplo. Além disso, o professor acredita que a recriação do Ministério do Trabalho, no ano passado, deveria ter tido um impacto maior no orçamento. "A inspeção do trabalho está enfraquecida. Mais do que dados econômicos, o orçamento reflete uma política governamental, as prioridades da gestão", explica.

Em dezembro, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) demonstrou preocupação com os recursos para a fiscalização trabalhista para 2022. Em nota pública, a comissão reforçou "a necessidade de assegurar recursos orçamentários, sobretudo se for considerado que os recursos destinados a esta rubrica vêm registrando queda considerável nos últimos anos".

As projeções não são boas. Quase um terço do orçamento do Ministério do Trabalho e Previdência aprovado pelo Congresso foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Apesar disso, pelo texto da Lei Orçamentária Anual (LOA), a previsão de gastos para 2022 com inspeções trabalhistas é maior do que em 2021. Porém, o orçamento é 34% do que foi em 2017 e metade do que foi aprovado em 2019. O Ministério do Trabalho foi questionado sobre os valores previstos, especificamente, para o combate ao trabalho escravo, mas não retornou os telefonemas.

A vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a juíza do trabalho Luciana Conforti, alerta, ainda, para o fato de o governo federal ter alterado uma norma que aumentava os recursos para os grupos móveis que fazem as operações de resgate, com verbas que resultaram das fiscalizações. Em 2021, um ato do Poder Executivo recusou os recursos que vinham da aplicação de multas do Ministério Público do Trabalho, dos Termos de Ajustamento de Conduta", destaca. No fim do ano passado, o deputado Rogério Correia (PT-MG) entrou com requerimento para que seja convocada uma audiência pública sobre esta alteração.

De acordo com Carlos Silva, a falta de orçamento é sentida no dia a dia das operações. "Muitas vezes, vamos fazer a operação e não temos carros ou não estão em boas condições, não temos telefones com sinais de satélite", relata.

A Defensoria Pública da União também se queixa da falta de condições para a sua participação nas fiscalizações. "Nosso orçamento está tendo cortes. Não conseguimos acompanhar todas as ações porque não temos efetivo. Falta também apoio do governo ao trabalho", afirma o coordenador do grupo de trabalho de assistência aos trabalhadores resgatados na defensoria pública, William Charley. Hoje, o Brasil tem cinco grupos móveis, responsáveis por fazer as operações de fiscalização e resgate. O país já chegou a ter 10.

"O Brasil serve de exemplo, já fomos elogiados pela OIT e pela ONU, mas nos últimos anos tivemos alguns retrocessos na política. É expressivo termos tido tantos resgates diante da falta de apoio. Temos um empenho das equipes de fiscalização e do Ministério Público. Um esforço das pessoas envolvidas e não do governo", afirma Raissa Roussenq, professora de direito na UnB e autora de um livro sobre a escravidão moderna.

A mediatização dos casos de resgates também poderá estar tendo efeito nas denúncias. “A pessoa vê de casa e talvez esteja com um parente passando por isso. Então ajuda demais na conscientização”, completa Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Correio Braziliense

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