O Semiárido brasileiro conta com uma nova delimitação, agora composta por 1427 municípios. Além da entrada de 165 novos municípios, outros 50 podem vir a ser excluídos da região. Estas definições são resultados da reunião do Conselho Deliberativo da Sudene (Condel) realizada no apagar das luzes de 2021 e que passou a vigorar no dia 3 de janeiro deste ano, onde foi aprovada a resolução nº 150/2021.
A revisão ocorre três anos após a última delimitação, que foi adiada de 2015 para o ano de 2017, em função do processo de impeachment da então presidenta Dilma Roussef. De acordo com a orientação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) responsável pela revisão realizada em 2005, a nova delimitação deve ocorrer a cada dez anos, devendo ser realizada apenas em 2027.
Este prazo não é a única questão que foge à regra. A aprovação da nova resolução não contou com nenhum espaço de apresentação, debate ou validação de organizações da sociedade civil. Para compor essa nova delimitação, os municípios tinham que atender a pelo menos um dos seguintes critérios: possuir índice de aridez superior a 0,2 até 0,5, ter precipitação pluviométrica anual igual ou inferior a 800 mm e um déficit hídrico de 60% e contiguidade, que significa garantir a permanência do município por proximidade extrema, independente de atender a um dos critérios técnicos. O município que obedecer ao menos um desses critérios em qualquer uma das estações meteorológicas pode integrar a lista.
O sociólogo e coordenador do Projeto Daki Semiárido Vivo pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Antônio Barbosa, avalia que os dados coletados para levar à composição atual precisariam ser validados, e em seguida, a resolução só deve entrar em vigor no início de 2023, portanto após o ano eleitoral, uma vez que o intervalo correto dos dez anos não foi cumprido .
“É verdade que estamos vivendo mudanças climáticas, ampliando as áreas desertificadas e não temos nenhuma dúvida que a área total do Semiárido só tem aumentado, mas, tratando da delimitação apresentada pode haver erros e fragilidades nos dados analisados, e dada a forma como o atual governo vem atuando na área ambiental, pode até, quiçá, haver adulteração de partes destes dados, não estamos afirmando nada”, explica.
Diante da questão, a ASA irá solicitar, formalmente, ao CONDEL, que esta resolução seja invalidada, e uma nova seja publicada no início de 2023, após a realização das eleições presidenciais. “Neste meio tempo, queremos que outros investigadores também possam avaliar esses dados. É importante que a Sudene revise, disponibilize a base de dados para validação, e cancele a atual portaria”, cobra Antônio.
O membro da coordenação Executiva da ASA, Cicero Felix, explica que o momento é de “chamar a atenção da sociedade e da Sudene para a importância de envolver a sociedade civil organizada, universidades, empresas de pesquisa nesse debate, que é tão importante para o Brasil e para as populações do Semiárido, que precisam ser ouvidas”, reforça Cicero.
Impacto financeiro - Dentre outras implicações, integrar o Semiárido significa ter legitimidade para acessar os recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). Para se ter uma ideia, no ano de 2018, o FNE tinha um volume de recursos programado de R$ 4,4 bilhões, dos quais foram contratados efetivamente apenas R$ 16,2 bilhões, ou seja, apenas 51% de um orçamento executável de R$ 32,6 bilhões.O valor total programado não foi executado.
A ASA considera que a nova delimitação do Semiárido pode ser uma estratégia para usar os recursos que sobram do FNE. “O que a gente vê é que isso termina sendo uma forma de usar a nova delimitação do Semiárido para fazer barganha com os recursos, adotando a velha política do clientelismo, do combate à seca. Essa mudança tem a ver com a destinação de recursos públicos, pois quando a gente vê uma placa de uma obra que diz ‘aqui tem recurso da Sudene’, quer dizer que tem investimento público em empresas privadas também”, pontua Antonio.
Após a dança das cadeiras - O estado de Minas Gerais, que agregou 119 municípios à região e teve oito excluídos, é dos que chamam mais atenção. Antonio Barbosa observa que 81 do total de municípios incluídos foram incorporados à área de atuação da Sudene, por meio do Projeto de Lei Complementar (PLC) 76/07, que foi aprovado no dia 31 de outubro de 2017, mas vetado integralmente por Jair Bolsonaro.
Em setembro de 2021, o veto foi derrubado no Senado Federal e os municípios foram, então, incorporados à área de atuação da Sudene. Três meses depois, esses mesmos municípios passaram a integrar a nova delimitação do Semiárido. “Boa parte desses municípios agregados pertencem à área Leste de Minas Gerais, não que essa área não tenha pessoas empobrecidas, não tenha dificuldade com água, mas o Semiárido é um espaço de identidade, não pode ser usado para acessar recursos apenas” , observa. Antonio Barbosa observando ainda que as regiões do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas Gerais, possuem uma história de integração com o Semiárido nordestino devido aos fortes períodos de estiagens, diferente da realidade vivenciada pela região Leste do estado.
O Semiárido de Pernambuco também ficou bem diferente, não pela quantidade de municípios, que totalizaram 14 inseridos e cinco excluídos, mas, sim, pela origem dos municípios agregados. Lagoa de Itaenga, Buenos Aires, Carpina, Tracunhaém e Nazaré da Mata, historicamente conhecidos como sendo da região da Zona da Mata, agora, compõem os 137 municípios da região semiárida pernambucana.
O estado do Espírito Santo, que em 2005, havia saído do Semiárido, foi reintegrado à região com seis municípios. Se por um lado alguns estados e municípios já sabem como vão se beneficiar da nova condição, outros sequer sabem que foram incorporados, como reforça Antonio Barbosa. “Uma outra fragilidade deste processo é os governadores, conselheiros do FNE, sequer foram consultados sobre essa mudança”, destaca.
Olhando para as mudanças nos municípios, a partir da linha histórica do quadro apresentado acima, Antonio Barbosa avalia que algumas mudanças parecem não fazer sentido. “ Um exemplo é Minas Gerais, que cresceu em 2017, agora, em 2021, cresce de forma exponencial, já o Rio Grande do Norte diminuiu. Então não dá pra entender como o Rio Grande do Norte, que é quase todo Semiárido, tenha diminuído e Minas Gerais tenha crescido em municípios da região Leste e o Espírito Santo tenha voltado, ou seja, tem alguma coisa que no mínimo não bate aí”, questiona.
Entendendo a história - O conceito de Semiárido surge em 1989, a partir da aprovação da Lei 7.827/89, no âmbito da área de atuação da Sudene e incorporando municípios com pluviosidade métrica anual de até 800 mm. O conceito não ganhou tanta popularidade e a região permaneceu relegada ao Sertão, Nordeste, nomenclaturas muito comuns na época. Nos anos 90, com a Conferência Eco 92 e a Conferência das Partes (COP 3), tem início uma pressão para que o Brasil incorpore a delimitação de Semiárido nas políticas públicas semelhante à forma como muitos países do mundo vinham adotando.
A partir de então, em 1995, ocorre a atualização da lei que criou a região. Em 1999, surge a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), propondo um projeto de desenvolvimento para a região, a partir da lógica de convivência com o Semiárido e em contraposição à lógica de combate à seca. Em 2004, durante o Governo Lula, a portaria interministerial nº 6 de 20 de março de 2004, institui um Grupo de Trabalho interministerial (GTI) formado por Ciro Gomes até então ligado ao Ministério da Integração Nacional, Marina Silva, Ministra do Meio Ambiente, e Eduardo Campos, que à época, representava o Ministério da Ciência e Tecnologia.
Na ocasião, foram estabelecidos os critérios para a delimitação do Semiárido, que também foram seguidos na última revisão, realizada no fim de 2021. Desde então, o Semiárido, que tinha 1.005 municípios, chegou a 1.333, mudança aprovada na portaria interministerial nº 1.
Prevista para o ano de 2015, a revisão da delimitação só ocorreu em 2017, momento no qual o país era presidido por Michel Temer. Antes disso, em 2014, um novo GTI foi constituído e decidiu manter os mesmos critérios técnicos definidos em 2005, porém, revisando os dados para o período entre 1989 e 2010. Sendo assim, em julho de 2017, o Semiárido passou a ser constituído de 1.189 municípios.
Antonio Barbosa destaca que já a partir de 2017, teve início o uso de critérios questionáveis tecnicamente, se comparado às regras estabelecidas em 2005. “Imagine que Teresina passa a compor a lista de municípios do Semiárido em 2017! E nós estamos falando da região Meio Norte, área de transição para a região amazônica,” frisa o sociólogo.
As dúvidas sobre o caráter técnico ou político dos critérios adotados na nova delimitação do Semiárido ganharam ainda mais força em 2017 quando quatro meses após a aprovação da portaria, ou seja, no mês de novembro, foi divulgada uma nova lista ampliando o número de municípios para 1.262. A mudança, aprovada pela resolução nº 115/2017, resultou de um recurso apresentado pelos estados do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Bahia solicitando a inclusão de 49 municípios ao Semiárido. Além disso, o Condel solicitou a entrada de outros 24 municípios por questões de variabilidade dos indicadores, por fazerem fronteira com o limite do Semiárido e por contiguidade.
Como fica a política de convivência - O projeto de desenvolvimento do Semiárido com base na convivência com a região possui como alicerce o envolvimento da população na construção das políticas públicas que supram as necessidades das pessoas e adequadas às especificidades da região, cuja engrenagem funciona a partir da estocagem de água, sementes e alimento animal. Essas políticas se distanciam da lógica do clientelismo, do coronelismo,da água como moeda de troca. “É a lógica de vender a região como coitada. Porque é isso que acontece. Quando eu amplio o Semiárido, eu quero dizer ‘eu tenho uma região maior, mais coitada’. Isso não cabe mais! ”, critica Antonio Barbosa.
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