No mês do centenário da Semana de Arte Moderna, a cultura nacional sofreu um duro golpe do governo federal, que mudou as regras da Lei Rouanet e reduziu a capacidade de financiamento da nossa indústria cultural.
É mais um elemento do ambiente político e ideológico tóxico que estamos vivendo, pautado pelo obscurantismo da política oficial. Não à toa, ocorre num momento tão simbólico como essa efeméride.
Marco da história de São Paulo, que emergia como centro dinâmico da economia brasileira e polo hegemônico da Primeira República, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi uma ruptura com o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica, que iria se somar e influenciar outras manifestações modernistas, que ocorriam no Rio de janeiro e outras capitais do país. Agora, parece que o governo quer fazer a roda da história voltar para trás e inviabilizar teatros, cinemas, a música, o audiovisual e, principalmente, a vida profissional de artistas, diretores e produtores culturais.
Há 110 anos, motivados pelo Centenário da Independência, artistas e intelectuais anunciaram o rompimento com as correntes literárias e artísticas anteriores, defendendo um novo ponto de vista estético e o compromisso com a independência cultural do país. Entre os dias 13 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, houve a exposição, no saguão, aberta ao público de 100 obras de arte que rompiam aqueles padrões, algumas das quais estão em grandes museus, e três sessões literárias e musicais noturnas. Inspirados nas vanguardas europeias e dispostos a promover a renovação da cultura brasileira, a força literária e artes plásticas conferiram à Semana de Arte de 1922 o caráter icônico que tem hoje, que se somou à mudança política que estava em curso, que iria desaguar na Revolução de 1930.
O modernismo no Brasil teve múltiplas manifestações, notadamente no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Pernambuco, mas nenhuma delas com a mesma capacidade de traduzir, naquele momento, o fenômeno da industrialização, da urbanização e da imigração de estrangeiros, como ocorria em São Paulo. Por ironia, neste ano do Bicentenário da Independência, estamos assistindo a uma grande onda regressista no plano cultural, patrocinada pelo governo Bolsonaro, cujo objetivo é desarticular a nossa cultura e levar ao ostracismo seus mais importantes representantes.
A maneira de fazer isso é levar ao colapso o financiamento da cultura e seus protagonistas. Ontem, o Diário Oficial da União publicou mudanças nas regras da Lei de Incentivo à Cultura, de 1991, conhecida como Lei Rouanet, a mola mestra da indústria cultural brasileira. Assinada pelo secretário especial de Cultura do governo federal, Mario Frias, a instrução normativa define valores que podem ser captados por projeto e por empresas, bem como cachês pagos aos artistas.
Como se sabe, a Lei Rouanet autoriza produtores a buscarem investimento privado para financiar iniciativas culturais. Em troca, as empresas podem abater parcela do valor investido no Imposto de Renda.
O valor máximo a ser captado caiu para R$ 6 milhões, para concertos sinfônicos, museus e memória, óperas, bienais, teatro musical, datas comemorativas (carnaval, Páscoa, festas juninas, Natal e ano-novo), inclusão de pessoa com deficiência, projetos educativos e de internacionalização da cultura brasileira. O prazo de captação foi reduzido para dois anos.
No caso de artista ou modelo solo, o limite dos caches caiu de até R$ 45 mil para até R$ 3 mil por apresentação. No caso das orquestras, o limite que pode ser pago ao músico por apresentação passou de R$ 2,25 mil para R$ 3,5 mil, porém, para o maestro, caiu de R$ 45 mil para R$ 15 mil. No audiovisual, os valores foram mantidos, pois já haviam sido reduzidos: médias metragens, R$ 600 mil; festivais, R$ 400 mil; jogos eletrônicos e aplicativos educativos e culturais, R$ 350 mil; programação semestral de rádio, R$ 100 mil; episódios de programas de tevê, R$ 50 mil; infraestrutura de sites, R$ 50 mil; produção e conteúdo de internet, R$ 150 mil; e episódio de web série, R$ 15 mil.
Desde a campanha eleitoral de 2018, o presidente Jair Bolsonaro defende mudanças na Lei Rouanet. Influenciado pelo falecido escritor Olavo de Carvalho, acredita que a política cultural é uma forma de dominação da esquerda, "comunista", por meio do chamado "marxismo cultural". O termo foi adotado pela extrema-direita dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, para atribuir aos "judeus da Escola de Frankfurt" a busca pelo controle da sociedade pelo comunismo.
Adaptado por Olavo de Carvalho, o termo vem sendo usado no Brasil para caracterizar uma suposta ameaça de ditadura gayzista, feminista, abortista, globalista, libertina etc. Na cabeça de Bolsonaro, a mudança mira a esquerda. Na realidade, aprofunda a crise de financiamento da indústria cultural, duramente atingida pela pandemia.
Luiz Carlos Azevedo-colunista Correio Braziliense
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