Um dos mais fortes símbolos das águas do Rio São Francisco, as carrancas, se perpetuam ao longo das gerações. Assim como o Velho Chico, elas mostram a força da cultura em torno da bacia exclusivamente brasileira, capaz de unir seis estados (Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe), além do Distrito Federal.
Uma das mais populares é a carranca vampira, inicialmente chamada de carranca macaca, criação do mestre carranqueiro Severino Borges de Oliveira, ou simplesmente Mestre Bitinho, como é popularmente conhecido.
Nascido no município de Taipu, Rio Grande do Norte, no dia 21 de junho de 1941, acostumou-se à vida errante pelo fato do pai ter sido cigano, além de artesão e exímio ferreiro. Aos 12 anos, dominando as técnicas em madeira e ferro, confeccionava espingardas e bonecos que eram vendidos nas feiras.
A inspiração para a fisionomia da carranca vampira surgiu a partir do filme King Kong Escapes, dirigido pelo japonês Ishiro Honda (1967), lançado em 1971, que contava a história de uma batalha travada entre o macaco gigante e uma réplica mecânica. A imagem impressionou o artesão e serviu de inspiração para a criação do novo modelo que rapidamente se popularizou.
“Meu pai tinha uma espingarda e nela tinha a imagem de uma carranca, mas só vim conhecer de fato a carranca quando cheguei em Petrolina e Juazeiro. Aqui já se produzia a carranca estilo guarani que tem as feições inspiradas no cavalo e no cachorro, por exemplo. Naquela época, lembro que nem se chamava carranca, a gente fala que era ‘bicho feio’. As esculturas eram usadas nas embarcações que se moviam a vela ou vara, não tinham motor. Era o homem empurrando, subindo rio acima até Pirapora. As carrancas afugentavam animais selvagens e espíritos como o Nego d’Água que é o inimigo da carranca”, lembra o artesão, em detalhes, de como começou a confeccionar as carrancas.
Mestre Bitinho é o mais antigo carranqueiro em atividade em Petrolina (PE), onde fincou raízes na década de 1970. Aos cinco anos de idade já ajudava o pai, e aos sete aprendeu a fazer agulhas para costurar sacos e apitos para chamar nambus – ave existente na Caatinga e nos canaviais. Ao produzir as carrancas vampiras, ajudou a impulsionar a retomada da produção carranqueira artesanal junto a artesãos como Ana das Carrancas e o escultor santeiro Roque Gomes da Costa (Rock Santeiro).
“Quando comecei eram centenas de carranqueiros. Ensinei muita gente, mas agora são pouquíssimos. A carranca que criei, na época foi a mais vendida e ainda é até hoje porque ela assombra mesmo e chama atenção de todos”, destaca.
O mestre carranqueiro usa como matéria-prima a umburana, mas com o processo de degradação da Caatinga, a madeira vem se tornando cada vez mais escassa e por isso também costuma trabalhar com outros tipos de madeira a exemplo da umburana de cheiro, também já pouco encontrada, nim, cedro, entre outras. “Da umburana uso apenas o miolo da madeira, que é a parte amarela. Isso garante que a peça não vai dar cupim”.
DE PAI PARA FILHO: Aos 81 anos, o artesão confessa que quer trabalhar, propagando a cultura do Rio São Francisco até completar 90 anos e depois disso quer assistir seu legado se perpetuando através do filho, também artesão, Nivandro Félix de Oliveira. Pai de 19 filhos, o Mestre Bitinho disse que vem preparando o filho para a missão. “Depois de completar 90 anos, vou só acompanhar o trabalho dele”.
Nivandro tem formação técnica em eletrônica, mas a sua relação íntima com a arte desde que nasceu definiu o seu destino. Replicou a história do pai ao se interessar, mesmo que por brincadeira, pelo artesanato aos 12 anos quando fazia espadas e piões de madeira. Depois começou a lixar as peças do pai e hoje é dele a função de dar acabamento a elas. Há cerca de 10 anos desistiu da eletrônica e vem se dedicando integralmente ao artesanato e à produção de carrancas.
“Lembro que meu pai sempre teve muita encomenda e para dar conta, precisava de mais pessoas ajudando. Eram umas quatro a cinco pessoas para dar conta de tudo e sempre quando as peças estavam prontas eu ia brincar com elas e acabava riscando ou desenhando. Bagunçava tudo”, lembra Nivandro, que já imprimiu novas características às carrancas que produz. Nas suas peças, a figura vampírica aparece de cabelo rastafári, brinco e tatuagem. “Antes meu pai dizia que cabelo tinha que ser cortado social. Tatuagem e brinco nem pensar. As coisas mudaram e, então, criei uma carranca com estas características que mostram uma outra estética. Chamo ela de carranca rebelde”, conta o filho de Mestre Bitinho.
Além da possibilidade de se perpetuar através do seu filho no artesanato e produção das carrancas, o Mestre Bitinho é um dos fundadores da Oficina do Artesão Mestre Quincas, localizada em Petrolina. O espaço reúne artesãos das mais diversas modalidades e as associações de artesãos do município.
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