Se você insiste em classificar o comportamento de João Gilberto (1931-2019) de antinatural, precisa ler Amoroso, biografia recém-lançada do baiano criador da bossa nova.
Zuza Homem de Mello (1933-2020), pesquisador e produtor musical, jornalista, amigo e fã do artista baiano, se valeu de entrevistas, depoimentos por escrito e matérias de jornal que mostram um Joãozinho companheiro, despretensioso e simples, extremamente sensível, dado, extrovertido, afetivo e comunicativo.
Um episódio “fabuloso”, conta Zuza, foi uma visita de João a Juazeiro, Bahia, sua terra natal, em 1971. Um passeio na madrugada, e João foi acordar um amigo de infância, João Duarte, que imitava um trem da época da maria-fumaça. “João Duarte, João Gilberto está aqui!”, gritou Maurício Dias, que implantou depois a Casa da Bossa no quarto onde João Gilberto nasceu. O artista disse: “João Duarte, faz 30 anos que eu dou risada, vim de Nova York só pra ver você imitar o trem”.
Depois de umas voltas por bares e cabarés, o grupo foi até a casa onde vivia Duvige, mulher de Duarte, mas os dois estavam separados. “Duvige, abre a porta aí (...). Você me largou, mas João Gilberto veio de Nova York me ver. Abre a porta, mulher”. Ela abriu, João Duarte imitou o trem, João Gilberto se embolou de tanto rir, e Duarte e Duvige voltaram às boas.
São histórias que os amigos não esquecem e que têm continuidade após o livro de Luiz Galvão, também lançado este ano: João Gilberto, a Bossa. Galvão e João Gilberto se conheceram ainda na infância, em Juazeiro, e continuaram amigos até a morte do bossanovista.
Ercília Lobo, produtora de eventos e mulher de Zuza por 35 anos, lembra do festão no Rio Comprido (RJ), no ano 2000, para homenagear o professor de Direito Simão Benjó, que atuava na ação contra a gravadora EMI movida por João. Ele quis oferecer ao amigo advogado uma apresentação durante o evento, em sinal de gratidão. Ninguém sabia que João iria, a não ser Zuza, Ercília, o dr. Benjó e o fiel escudeiro de João, Moacyr Octávio Castilho, o Otávio Terceiro. No livro, Zuza narra a “balbúrdia do salão” até que o jurista anunciou: “O maior cantor do mundo, João Gilberto!”
“Nessa festa, ele mostrou a grandeza dele”, diz Ercília ao CORREIO. “O mesmo João Gilberto, que quando está numa estrutura profissional e precisa do som na perfeição, precisa que o ar-condicionado não incomode e tenha esse alto nível de exigência, nessa festa onde todo mundo bebia, ninguém sabia que ele iria aparecer, vem o João Gilberto, com o violãozinho na mão, caminhando no meio do povo, sobe num praticável de um degrau só, senta e começa a tocar."
A produtora diz que ficou encantada com a cena: "Fez-se um silêncio absoluto, embora tivesse ainda aquele barulho de copos e pratos na cozinha, sabe? Ele não reclamou de nada e cantou tudo o que todo mundo pediu, até ‘Minas Gerais’. Nessa hora, Zuza até ficou com vergonha alheia... Sabe o que aconteceu? ‘Oooooh, Minas Gerais...’ Ele cantou! Era uma pessoa muito especial”, continua Ercília, que revisava os capítulos à medida que Zuza os concluía.
Mas além dos afetos, o livro não se furta a descrever os atrasos e as brigas do músico com colegas, maestros, arranjadores, bateristas... Em um depoimento ao autor, Chico Batera diz: “Eu deixei o João saber que eu não achava graça nenhuma naquelas histórias dele”, referindo-se ao climão com o maestro brasileiro Ely Arcoverde, durante a gravação do LP João Gilberto no México, em 1970. Foi Batera quem chamou o compositor e violonista Oscar Castro Neves para organizar a gravação no lugar de Ely, que, exaltado, chegou a dizer a João: “Olha, estou te esperando lá fora”. João achara “feio” o arranjo de Ely.
Zuza enriquece esses relatos com o seu conhecimento especializado sobre música, ajudando a contar a história da canção brasileira, não só a criação da bossa nova — sendo Desafinado, que João Gilberto nem queria gravar por causa do título, o primeiro hit da bossa nos Estados Unidos — como também a importância dos conjuntos vocais para João Gilberto, “celeiro de parte fundamental do repertório cultivado por toda a sua vida”, escreve o autor. João gostava de desafiar quem o ouvisse sobre de onde vinha aquele samba. O próprio João integrou dois desses conjuntos: o Garotos da Lua e o Quitandinha Serenaders.
O período de oito meses em Porto Alegre (RS), a partir de 1955, foi determinante para o estudo da música e aperfeiçoamento da harmonia e da batida do violão de João mais do que o banheiro e sua acústica em Diamantina (MG) — episódio superdimensionado, na visão de Zuza. De Porto Alegre, para onde foi com Ercília fazer duas entrevistas para o livro e voltou com sete, Zuza destaca três personagens fundamentais: dona Boneca, uma segunda mãe; Luís Telles, um mecenas; e Armando Albuquerque, professor e maestro dedicado à música clássica.
Foram sucessivos encontros nas tardes de sábado, um no violão e o outro no piano. De ouvido privilegiado, João buscava um novo modelo de ritmo e viu que os acordes do piano poderiam ser levados para o violão. “Uma abertura para o universo da harmonia, o elemento que lhe faltava”, escreve Zuza. Foi um período de novas amizades e também de isolamento no hotel Majestic, onde se trancava para estudar os novos acordes.
Ao reunir todo esse material, o autor sentou e escreveu sem parar, como relembra Ercília. Horas antes do infarto fulminante em outubro do ano passado, Zuza ainda revisou os agradecimentos do livro, que estava pronto. Morreu sem assistir a seu lançamento. Viveu, no entanto, uma amizade profunda com o gênio de personalidade complexa.
Como escreveu Mario Sergio Conti no jornal Folha de S.Paulo, em 2019, após a morte de João: “É difícil ver nesse brasileiro sensível, afetuoso e otimista — nesse homem solar — o gênio rabugento e recluso que pintam. João tinha vários amigos, amou muitas mulheres. Gostava de viver e era intenso”. Amoroso, como defende seu biógrafo.
Amoroso, uma Biografia de João Gilberto
Companhia das Letras| 323 págs.
R$ 89,90 e R$ 39,90, em e-book.
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