O Semiárido sempre esteve presente nas obras literárias. Por essa razão, o Dia Nacional do Livro, celebrado ontem sexta, 29 de outubro, tem um sentido diferenciado para a região, que já tem a sua nova história contada em obras contemporâneas. Lançado em 2006, o livro Entre o Combate à Seca e à Convivência com o Semiárido, do filósofo Roberto Marinho, é a primeira publicação a contar a história da região a partir das experiências de convivência com o Semiárido desenvolvidas por organizações não governamentais.
A obra de Marinho investiga experiências e reflete sobre um novo modelo de desenvolvimento sustentável adequado às características do Semiárido.
De acordo com o agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Roberto Malvezzi, conhecido como Gogó, um dos fundadores da ASA e que, há décadas, atua na luta pela convivência com o Semiárido, esta obra foi bastante utilizada nas atividades formativas da ASA. Ele explica que a publicação é “uma tentativa de colocar esse novo paradigma [de convivência] em cena, de uma forma organizada, de uma forma acadêmica.”
Esse modelo de desenvolvimento apontado por Marinho, denominado convivência com o Semiárido, surgiu no início dos anos 90 sob a influência da obra Pedagogia do Oprimido, lançada em 1968, pelo educador e pesquisador Paulo Freire. Esta também foi a semente que deu origem à Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). “É um livro que nos coloca numa perspectiva de uma educação libertadora, que vai alimentar o trabalho feito pela ASA, porque é um diálogo entre o saber técnico e o saber científico, entre o refletir e a prática”, explica.
Recuando até o século 19, encontramos Geografia da Fome, obra do médico e pesquisador Josué de Castro, lançada em 1940, que analisa a fome como um fenômeno social e geográfico. O livro traz “a formosa abordagem que diz que a fome no litoral é sistêmica e no Sertão é endêmica”, pontua Gogó. A expressão indica que, no Semiárido, a alimentação é mais rica do que na região litorânea, que vive basicamente dos engenhos. Entretanto, conclui Gogó, “já que a fome vinha como uma epidemia no Sertão [nos períodos de estiagem], se tornava mais voraz.”
Outro clássico que, mesmo não trazendo a perspectiva da convivência com o Semiárido, foi importante para “denunciar as injustiças sociais, antes atribuídas à natureza”, foi O Quinze, enfatiza Gogó. A obra de Raquel de Queiroz, publicada em 1930, é uma das abordagens pioneiras sobre o drama da seca nas vidas das famílias, ilustrado por um relato da experiência da própria autora que quando criança atravessou a grande seca de 1915.
Na época de O Quinze, era muito comum resumir o Semiárido ao Sertão. Décadas depois, no ano de 2008, o livro Semiárido: uma visão holística, de autoria do próprio Roberto Malvezzi, é lançado, trazendo uma abordagem específica da região, relacionando-a às suas várias dimensões, bioma, povos, cultura, por exemplo.
Semi-árido: uma visão holística aborda a região sob uma perspectiva ampla, que ganha ênfase nas produção acadêmicas - Imagem: Roberto Malvezzi
"Eu percebi que esse livro foi muito utilizado nos meios acadêmicos como uma abordagem metodológica. Eu mandei um exemplar para Leonardo Boff e ele disse que leu num instante por causa da lógica do pensamento complexo em que você tenta integrar todos os ângulos das formas da existência”, destaca.
Uma semente que deu muitos frutos - A obra Pedagogia do Oprimido deixou muitos outros frutos no Semiárido. Gogó, que trouxe uma importante contribuição para a construção da nova história da convivência com o Semiárido, atuando na Comissão Pastoral da Terra e em diversas redes e movimentos sociais, nos confidenciou que teve a sua formação acadêmica e política marcada pela obra em questão. Bem antes da ASA nascer, em janeiro de 79, ele aportou no município de Campo Alegre de Lourdes (BA) e logo foi para a comunidade rural Pajeú, onde passou 30 dias.
Chegando lá, dedicou-se à alfabetizar as crianças da comunidade, usando o método das palavras geradoras, ensinado por Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido. As duas palavras mais usadas nas aulas foram fome e sede. Ele passava as palavras, as crianças aprendiam o seu significado a partir de exemplos reais, vivenciados na própria comunidade. Ele não tinha ideia do quanto esta semente havia germinado até que, 38 anos depois, ao encontrar uma mulher de tranças no cabelo que estava em uma van, que era abastecida no mesmo posto de combustível no qual ele se encontrava, teve uma surpresa. A mulher desce do carro e pergunta:
O senhor se chama Gogó?
Sim, responde ele.
Então, foi você quem me alfabetizou quando eu era criança, ela disse olhando para ele com sorriso largo, sem esconder a emoção e a surpresa de revê-lo tanto tempo depois;
É, fico feliz em saber disso! Onde foi?
Foi na comunidade Pajeú, em Campo Alegre de Lourdes! Pois é, tô vindo agora de Petrolina, tô fazendo faculdade lá, e tudo começou com aquela alfabetização lá na comunidade.
Sem dizer uma palavra, Gogó abriu um sorriso doce, estimulado pela memória afetiva que havia sido resgatada naquela hora. Ali mesmo, os dois se abraçaram e se despediram. E segundo Gogó, foi o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, que o incentivou a fazer esse trabalho, dando vida a essa experiência que está guardadinha até hoje no seu coração.
Saberes e novas histórias - Os veículos da imprensa brasileira têm um papel fundamental na narrativa da história do Semiárido, cujas imagens e representações ficaram cristalizadas na memória das pessoas. Observar como essas narrativas são construídas e, mais do que isso, identificar processos de comunicação desenvolvidos no Semiárido na contemporaneidade motivou a produção da obra Comunicação no Semiárido Brasileiro, publicada pela editora Marca de Fantasia.
O livro, lançado em março deste ano, foi encabeçado pela professora e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenadora do Observatório de Jornalismo do Semiárido (Objor), Sandra Raquew, junto com um grupo de pesquisadores e pesquisadoras de universidades dos estados de Pernambuco e do Rio Grande do Norte.
No período entre 2017 e 2018, o grupo de pesquisadores se dedicou a observar “como a imprensa lida com a questão da luta pelo direito à água. Que visão a imprensa vai construindo sobre as grandes obras e os seus marcos regulatórios de direito à água”, explica Sandra.
Um dos resultados desta observação, presente na página 174 do livro, trata o uso de imagens ilustrativas identificadas em 93,3% de um conjunto de reportagens produzidas pelo jornal Folha de São Paulo e analisadas no livro. O texto lamenta que as matérias “em pleno Século XXI, ainda repercutem negativamente imagens do Semiárido brasileiro, na medida em que trazem signos e representações estereotipadas.”
A produção da obra ocorreu entre os anos de 2013 e 2016. Ao longo deste percurso, afirma a pesquisadora, foi possível identificar que “no Semiárido emergiu uma dinâmica de comunicação como um Direito Humano, uma dinâmica muito linda, de processos de comunicação horizontais e participativos e processos de comunicação educativos. A educação está muito presente quando a gente fala de convivência com o Semiárido”, observa Sandra.
A obra Comunicação no Semiárido Brasileiro deixa como um de seus legados a consolidação de um saber importante e diverso estimulado pelo paradigma da convivência com o Semiárido, que foge à estigmatização. O legado é o “reconhecimento de todos os saberes construídos, a partir de uma visão desconstrucionista de um estigma, que vez por outra é atualizado para construir um imaginário desigual, e, às vezes, xenofóbico sobre os povos do Semiárido”, conclui Raquew.
© Copyright RedeGN. 2009 - 2024. Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do autor.