A reação negativa dos mercados em relação à pretensão do governo de furar o teto de gastos para financiar o novo Bolsa Família é o primeiro sinal de um cenário bem mais negativo que começa a ser desenhado na economia, na opinião de especialistas ouvidos pela CNN Brasil.
O teto de gastos é uma regra que limita o avanço anual dos gastos públicos à inflação do ano anterior. Ele foi criado em 2016 a partir da constatação de que o país caminhava para um cenário de desastre fiscal, já que o crescimento das despesas públicas crescia ao ano sistematicamente 6% acima da inflação. Nesse ritmo, a análise geral é que não demoraria até que o país perdesse a capacidade de arcar com suas dívidas.
O medo agora é que esse cenário de descontrole fiscal volte e acabe anulando os efeitos positivos de um programa social mais robusto como o Auxílio Brasil. E o principal canal para isso acontecer é a inflação.
“Quebrar a regra (do teto) tornaria a situação fiscal novamente insustentável. O Banco Central perderia a capacidade de assegurar a estabilidade da moeda, agravaria a situação fiscal com risco até de voltarmos para um extremo de hiperinflação”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega à CNN.
A análise de Felipe Salto, diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente do Senado (IFI), também vai nessa linha. “Esse gasto adicional, num primeiro momento, pode elevar as atividades de consumo e minimizar os efeitos de corrosão da inflação sobre a renda real, mas, por outro lado, tende a estimular a inflação”, diz.
A pressão sobre os preços, por sua vez, levaria o Banco Central a continuar subindo os juros, o que tende a colocar um freio na atividade.
O principal canal para que o efeito das parcelas maiores do benefício acabe tendo o efeito oposto do perseguido é o desancoramento das expectativas do mercado. E essa quebra de expectativas ocorre, justamente, pela desconfiança em relação à capacidade do orçamento público de sustentar o programa no longo prazo.
A quebra de expectativas seria seguida, segundo Mailson, de uma crise maior de confiança, que levaria a uma fuga de capitais. “Ou seja, pressão adicional na taxa de câmbio, que reajusta quantidade considerável da cesta de preços, como gasolina, gás de cozinha, alimentos. Tudo isso poderia levar a uma disparada muito mais grave do que a que vemos agora nos preços”, diz.
E o efeito da inflação vai muito além de machucar o bolso do brasileiro. Cada ponto de inflação significa R$ 12 bilhões de gastos para 2022, o que isso inviabilizaria ainda mais os cofres para a adesão do auxílio, segundo Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados.
“Essa discussão às vésperas de uma eleição coloca uma impressão extremamente eleitoreira, o que pode ser ruim para o mercado. Não deveria haver discussão sobre extrapolar o teto, uma substituição tem que ser bem pensada”, ressaltou o economista.
O programa Auxílio Brasil foi anunciado na quarta-feira (20) pelo ministro da Cidadania, João Roma, para ter início em novembro deste ano. Há menos de duas semanas do fim do auxílio emergencial, o novo Bolsa Família promete ser mais robusto que o programa atual.
De forma geral, ninguém discorda da necessidade de ajudar a população mais vulnerável nesse momento, que ainda sofre as sequeles da pandemia da Covid-19. O problema é a forma como o governo vem introduzindo o assunto.
A ideia é que o novo programa pague parcelas de R$ 400. O valor é R$ 100 a mais que o proposto inicialmente e mais que o dobro do pagamento médio do Bolsa Família, de R$ 189. Já o número de beneficiários permanentes subiria de 14,7 milhões para 17 milhões.
Uma forma de seguir por esse caminho, segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, nesta quarta-feira, é deixar R$ 30 bilhões acima do teto. O mercado não entendeu muito bem essa conta, o que torna ainda mais incerta a capacidade do país de bancar o programa e os impactos macroeconômicos disso.
O temor de que esse tipo de manobra seja reincidente também existe. “Caso o governo fure o teto, o que o impede de extrapolar esse limite novamente no futuro com outra justificativa?”, diz Juliana Damasceno, pesquisadora do FGV IBRE.
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