A inflação crescente e sem freio atingiu em cheio os mais pobres, e os retrocessos sociais estão mais evidentes. Em vez do gás de cozinha, fogão a lenha. No lugar da carne no prato, ossos que antes iam para os cachorros e pé de galinha, quando o dinheiro dá para comprar.
A energia elétrica foi substituída por velas e lamparinas. Já o carro e o ônibus foram trocados pela bicicleta reformada ou mesmo por longas caminhadas. Essa é a realidade sombria de muitos brasileiros. Nem a ajuda do governo, quando vem, dá um alívio às famílias menos privilegiadas.
É o caso da moradora do Paranoá, Antonia Ladyjane Silva, 34 anos, que tem sentido o peso do dragão da inflação no bolso. Monitora educacional voluntária, recebe apenas o auxílio para passagem e lanche no valor diário de R$ 30, valor que ela economiza, indo e voltando a pé da escola onde trabalha, e levando comida de casa. No fim do mês, acumula cerca de R$ 600 e, com uma ajuda que recebe de uma Organização Não-Governamental (ONG), vem garantido o sustento da família, composta por ela, os dois filhos menores de idade e o marido, atualmente desempregado.
“Tudo vai embora nas contas. A da água está vindo R$ 220 por mês, porque eu tive que renegociar uma dívida que estava acumulada. Na de luz, estamos pagando quase R$ 100, apenas com uma TV e uma geladeira. Os alimentos, nem se fala: leite, arroz, óleo, feijão e até o flocão (flocos de milho), que era R$ 0,99 foi para R$ 2,50. Tudo está caro”, detalha Antonia que, assim como outras 1,2 milhão de pessoas, aguarda para participar do Bolsa Família.
O último dado do Indicador de Inflação por Faixa de Renda do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), referente ao mês de setembro, revelou que a inflação continua mais acentuada para as famílias de renda muito baixa 1,30%, comparativamente à apurada no grupo de renda mais elevada, de 1,09%. Essa taxa está abaixo da inflação oficial de setembro medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que subiu 1,16% em relação a agosto e acumula alta de 10,25% em 12 meses. Analistas reconhecem que o custo de vida não deve cair facilmente, porque a inflação está muito disseminada na economia, atingindo a maioria dos itens de consumo da população.
Antonia, que sonha em ser pedagoga um dia, se emociona ao falar dos filhos e do que gostaria de oferecer a eles. “As contas não deixam a gente pensar nos estudos ou no lazer. Tem hora que eu penso que é difícil você se manter e ser feliz ao mesmo tempo. Isso é o que mais dói, mas eu não sou de reclamar”, desabafa.
RECORDE: A geógrafa Lara Montenegro tem acompanhado de perto o desespero de famílias como a monitora Antonia. Coordenadora da “Rede Solidária Entre Nós”, que ajuda famílias com doação de cestas básicas e a mapear os lares mais carentes para recebimento de assistência social do governo. A especialista afirma que, somente na capital federal, mais de 170 mil pessoas aguardam para serem atendidas nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), número recorde.
Fátima, que prefere dizer apenas o primeiro nome e não tirar fotos, tem medo que isso possa prejudicar sua situação junto ao Cadastro Único, para recebimento do auxílio assistencial. Ela é uma das 177 mil pessoas na fila de espera por atendimento em um dos CRAS da Capital. A moradora do DF tem enfrentado dificuldades ao lado dos dois filhos menores de idade e do marido, desempregado como ela. “Além de ser desgastante, fico ansiosa todo dia por uma ligação que pode nunca chegar, isso é muito dolorido”, diz, sobre a espera por resposta sobre a solicitação feita em abril deste ano, junto ao governo. Até que o cadastro seja aceito, ela conta que a família tem feito de tudo para que não falte o básico em casa, além de contar com a ajuda de terceiros. “A carne agora não é para todo dia, ultimamente estamos consumindo bastante ovo, que também não está barato, mas é melhor comprar uma cartela de ovo do que um quilo de carne”, relata, junto ao filho mais novo, Enzo, de 9 anos, diagnosticado com espectro de autismo.
A carestia tem tornado comuns cenas devastadoras que chocaram o país, como a de uma fila gigantesca para receber doação de ossos em um açougue em Cuiabá (MT). Na cidade de Anápolis (GO), uma família se queimou, recentemente, ao tentar acender um fogão a lenha com álcool, por falta de gás. Outro caso emblemático foi o de uma mãe de cinco filhos que foi presa por furtar, na última semana, dois pacotes de macarrão instantâneo, um refrigerante e um sachê de suco em pó em um supermercado na Zona Sul de São Paulo. “Roubei porque estava com fome”, argumentou, ao ser detida.
“O Estado não cumpre o seu papel em garantir condições dignas de sobrevivência a todos os cidadãos brasileiros. Mas não tem trabalho de sociedade civil que dê conta de fazer o que é papel do Estado. Há mais de 120 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, e somente programas de distribuição de renda em grande escala darão conta de responder às necessidades básicas dessa enorme parcela da população”, avalia a assistente Lara Montenegro.
O professor-associado do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) Célio Bermann concorda que há incapacidade do governo em gerir questões como, por exemplo, a crise hídrica. “A gente nota uma incapacidade de lidar de forma adequada e técnica na questão da escassez hídrica e do aumento tarifário, tentando atenuar as consequências dessa escassez com aumento tarifário ou restrição do consumo de energia, como se a única responsabilidade fosse do consumidor”, critica. Segundo Bermann, a questão da energia elétrica no país vai muito além de uma crise energética, mas é social.
“Quando você vê a população de baixa renda buscando alternativas para garantir segurança energética, como uso de álcool e fogão a lenha, notamos a desigualdade vexatória no país e a necessidade de políticas públicas voltadas para as classes sociais menos favorecidas, principalmente com as consequências da pandemia”, argumenta.
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