O presidente Jair Bolsonaro, via decreto, alterou a Lei dos Agrotóxicos, em vigor desde 1989. O texto permite que pesticidas que causam doenças como câncer possam ser liberados no país caso exista um “limite seguro de exposição”.
A medida também cria um rito de “tramitação prioritária” para aprovação de novos produtos. O decreto, publicado no Diário Oficial da União, ocorre enquanto o chamado “PL do Veneno” segue parado no Congresso Nacional — a última movimentação do projeto que busca alterar a regulamentação dos agrotóxicos no Brasil foi em junho de 2018.
Segundo a médica e pesquisadora da Fiocruz e Abrasco, Karen Friedrich, a decisão do presidente flexibiliza o registro de pesticidas no país. Atualmente, substâncias que causam doenças como câncer, mutação genética e má formação fetal, à princípio, não têm seu uso e fabricação aprovados no Brasil. Com o decreto de Bolsonaro, a regra muda: caso seja possível determinar uma dose segura de uso e exposição, a substância pode ser permitida. “O que vamos ter são produtos muito mais tóxicos, com um maior potencial de causar doenças, ou seja, vamos ter o aumento dos casos dessas doenças e mais pessoas expostas”, avalia.
A medida também estabelece uma “tramitação prioritária”, na qual o rito de aprovação de um agrotóxico é apressado. Para um produto inédito no país, por exemplo, o Ministério da Agricultura, Ibama e Anvisa têm até 12 meses para avaliar a conclusão.
Antes, o prazo estipulado era de até 120 dias, que raramente era cumprido. Na prática, os processos levavam até mais de seis anos para serem concluídos, devido à uma longa fila de demandas nos três órgãos que fazem a avaliação. De acordo com o Ministério da Agricultura, caso os três órgãos federais não avaliem o agrotóxico dentro do prazo, eles ficarão em desconformidade com o estabelecido no decreto presidencial, mas não ocorrerá a liberação automática dos produtos.
A partir do decreto, fica a cargo do Ministério da Agricultura decidir se o processo de avaliação de um registro será classificado como prioritário ou ordinário. Caso seja prioritário, um produto inédito tem que ser avaliado no prazo de 12 meses, enquanto um produto genérico, que já foi aprovado no Brasil por outra empresa, tem prazo de seis meses. Os processos ordinários podem durar até três anos em casos de pesticidas inéditos e até dois anos com os genéricos.
De acordo com o texto, o Ministério da Agricultura terá que criar uma regulamentação com regras para definir os registros prioritários, entre os critérios estão a finalidade agrícola ou o objetivo de promover a competitividade no setor. O processo de avaliação desses produtos será priorizado também entre as atividades da Anvisa e do Ibama.
Segundo a Secretaria de Imprensa da Presidência, o objetivo do decreto é aumentar a concorrência no mercado de agrotóxicos. O governo afirma que, com isso, produtos mais modernos e menos tóxicos poderão ser utilizados, além de reduzir os custos para o produtor. O Mapa diz que a lista prioritária será feita para estabelecer quais registros são mais necessários para a agricultura brasileira, independente de quando o processo tenha sido iniciado.
Desde o começo do governo, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, já disse diversas vezes que o processo de aprovação de agrotóxicos no Brasil é lento, e que atrasa o agronegócio brasileiro. Porém, os anos de governo Bolsonaro foram os mais permissivos para a aprovação de registros de agrotóxicos na história. Desde 1º de janeiro de 2019, 1.411 produtos agrotóxicos foram aprovados. No Brasil, existem hoje 3.477 pesticidas no mercado, ou seja, 40% de todos produtos vendidos no país foram aprovados nos pouco mais de mil dias de governo Bolsonaro.
Para Karen Friedrich, a medida de Bolsonaro acaba sendo uma forma de passar pelo Executivo o que os congressistas não conseguiram avançar no Legislativo com o Projeto de Lei 6299/02. “O Pacote do Veneno já vem passando. Esse boi já vem passando pela cerca através de vários dispositivos infralegais”, diz.
As mudanças não foram bem avaliadas pelo advogado Leonardo Pillon, membro da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Ele destaca que a Lei dos Agrotóxicos não tem como objetivo falar da competitividade no setor agrícola, mas sim da priorização na comercialização de agrotóxicos com menor potencial tóxico do que os já existentes. “Determinados agrotóxicos passam [a partir do decreto] a ser registrados com mais facilidade diante da flexibilização de registros, com os critérios de competitividade, fabricação e formulação nacional”, diz.
O decreto traz uma série de mudanças na lei dos agrotóxicos. Uma delas é a inclusão do Ministério da Agricultura em mais processos relacionados ao uso, fiscalização e regulamentação dos pesticidas: agora, por exemplo, a pasta irá monitorar os resíduos de agrotóxicos em produtos de origem vegetal e animal, o que antes era atividade realizada apenas pelo Ministério da Saúde.
Um dos pontos mais criticados do PL 6299/2002 é dar maior poder ao Ministério da Agricultura. Segundo o projeto, a pasta seria a única a decidir sobre o processo de registro de agrotóxicos, deixando o Ibama e a Anvisa apenas como órgãos consultivos.
Por outro lado, o decreto presidencial avança em relação à formação dos trabalhadores que fazem a aplicação dos venenos. Agora, os profissionais precisam ser registrados nos órgãos de agricultura dos estados ou do Distrito Federal e passar por um treinamento sobre riscos e aplicação adequada dos produtos. O Ministério da Agricultura terá que publicar um ato onde especificará as diretrizes do curso de capacitação para os aplicadores de agrotóxicos.
O advogado Leonardo Pillon criticou a falta de clareza de trechos do decreto. “Alguns artigos abrem margem para interpretações diversas”, diz. Ele exemplifica com as mudanças na aprovação de agrotóxicos agrícolas que podem ser usados na agricultura orgânica. Agora esses produtos, feitos a partir de substâncias biológicas, não precisarão mais de registro para serem comercializados no país — mas o decreto não detalha como será feita a denominação desses produtos.
“O texto parece propositalmente abrir margem para interpretações e aplicações que são contrárias à lei, que é superior em relação ao decreto”, diz o advogado. O Ministério da Agricultura será responsável por decidir se um agrotóxico se enquadra na categoria na categoria de produção orgânica.
A medida também legaliza algumas decisões tomadas nos últimos anos por meio de portarias da Anvisa, como as alterações na classificação de toxicidade e nos rótulos e embalagens de agrotóxicos.
Com o decreto, os produtos deverão seguir o Sistema Globalmente Harmonizado de Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (em inglês, Globally Harmonized System of Classification and Labelling of Chemicals), o GHS. Esse sistema é feito pela Organização das Nações Unidas (ONU) e serve como um padrão internacional para classificação e rotulagem e das frases de advertência e de alerta utilizadas para fins de comunicação do perigo dos produtos químicos.
Na época da publicação dessas alterações pela Anvisa, em julho de 2019, especialistas afirmaram que a medida poderia colocar sob risco ainda maior a saúde de quem lida diretamente com a aplicação dos pesticidas.
Uma das alterações mudará o modo de classificar os produtos mais perigosos, das classes “altamente tóxicos” e “extremamente tóxicos”. Se antes os que causavam problemas como úlceras, corrosão dérmica e na córnea e até cegueira entravam nessas categorias, agora só vão fazer parte delas os que apresentarem risco de morte por ingestão ou contato. Um levantamento da Agência Pública e da Repórter Brasil identificou que 500 dos 800 agrotóxicos registrados no Brasil com as classificações toxicológicas mais altas seriam rebaixados para classes inferiores.
Os rótulos desses produtos perdem a tarja vermelha e a caveira que chamava atenção sobre o risco mesmo para agricultores de baixa escolaridade que não soubessem ler.
A publicação do decreto presidencial chega após quase três anos de estagnação da pauta dos agrotóxicos no Congresso Nacional. Desde 2018, o principal projeto da bancada ruralista em relação ao tema, o PL 6299/2002, apelidado pela oposição como “Pacote do Veneno”, está parado na Câmara dos Deputados. Ele já foi aprovado pela Comissão Especial, e segue pronto para ser pautado em plenário.
Após a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara, a expectativa da bancada ruralista de que o tema finalmente seria pautado aumentou. Em fevereiro deste ano, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) entregou à Lira uma lista de pautas prioritárias do bloco, incluindo a votação do projeto. Até mesmo Tereza Cristina disse em um almoço da FPA que tinha expectativas que o projeto fosse votado. Tudo parecia encaminhado, já que até o próprio Lira faz parte da FPA e foi eleito com forte apoio dos ruralistas. Mas até agora nada aconteceu.
O decreto de Bolsonaro traz pontos semelhantes ao Pacote do Veneno, como o novo prazo para aprovações de agrotóxico e a maior participação do Ministério da Agricultura em trâmites relacionados ao tema. Porém, medidas mais polêmicas, como a exclusão da Anvisa e do Ibama da decisão final do processo de registro, ficaram de fora. “Não chega a ser um substituto ao PL. É mais uma continuidade do que desde o governo Temer tem se feito para flexibilizar as regras. Facilitação excessiva e desregulamentação descontrolada dos processos de aprovação de agrotóxicos”, diz Pillon da Campanha.
O deputado federal Nilto Tatto (PT-SP) diz que também enxerga no decreto muitos pontos que estão pautados no Pacote do Veneno, e que o texto tenta acelerar alguns dos elementos do projeto. “É o caso, por exemplo, da definição de prazos para conclusão de processos de registro, a criação de uma lista de agrotóxicos prioritários com precedência na conclusão do registro e a possibilidade de enxertar em agrotóxicos registrados recomendações de uso para ambientes urbanos, industriais e até em rios e florestas”, diz.
O parlamentar diz que o decreto materializa aspirações que a Frente Parlamentar da Agropecuária já vinha pedindo há algum tempo ao presidente Bolsonaro, e que hora ou outra seriam escutados devido ao peso que o agronegócio tem para sustentação política do Governo Federal. “Um verdadeiro absurdo em um cenário onde o mesmo governo não apresentou nenhuma política para agricultura familiar produzir alimentos sadios para enfrentar a carestia e a fome, e ainda vetou o Projeto de Lei que garantia um Auxílio Emergencial específico aos agricultores”, diz.
Parlamentares da Frente Parlamentar Ambientalista estão articulando uma resposta ao decreto, e avaliam a possibilidade de tentar derrubar a decisão pelo judiciário ou legislativo. Mas, até a publicação desta reportagem, não havia um veredito.
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