Avanço do mar ameaça o Recife, uma das cidades mais suscetíveis à crise climática no planeta

17 de Oct / 2021 às 14h00 | Variadas

“Cidade aquacêntrica de alguns milhões de habitantes”. É assim que o projeto colaborativo Recife Exchanges chama a capital pernambucana, a mais vulnerável das capitais brasileiras às mudanças climáticas e ao avanço do nível do mar.

No ranking global, a “Veneza Brasileira”, cortada por rios e mangues e banhada pelo Oceano Atlântico, ocupa o 16º lugar, segundo relatório mais recente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em agosto.

As próprias características geográficas do território do Recife, que cresceu dando as costas para as suas águas, potencializam o seu status de risco. A combinação de baixa topografia, intensa urbanização, alta densidade demográfica, histórico de ocupação desordenada e elevados valores ecológicos, turísticos e econômicos transformam a cidade em um caso raro de suscetibilidade à crise climática, com a possibilidade, até mesmo, de ficar submersa caso nada seja feito. 

O IPCC indicou que a atividade humana está provocando alterações no clima do planeta de forma sem precedentes e, além disso, algumas das mudanças já atingiram um patamar irreversível. Entre as principais considerações apontadas pelo relatório, estão o aumento do nível médio do mar, que subiu mais rápido desde 1900 do que em qualquer outro século nos últimos 3 mil anos; e a elevação da temperatura da superfície terrestre, mais rápida desde 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos visto nos últimos 2 mil anos. 

O professor Marcus Silva, do Departamento de Oceanografia e vice-coordenador do Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destaca que uma das principais preocupações para o Recife neste contexto de mudanças climáticas é que a cidade está muito próxima do nível do mar e todas as soluções precisam partir desse ponto. 

“O Recife tem uma densidade demográfica muito alta e a ocupação é muito próxima da costa. Isso gera um estresse muito grande, porque toda a infraestrutura da cidade está muito próxima do mar, o que causa problema de abastecimento, geração de energia e tratamento de esgoto”, cita o professor, que ainda sentencia: “A gente tem muito ribeirinho, uma população pobre que mora nessa situação. Temos toda uma planície que acompanha os rios e a economia da cidade gira em torno de ilhas”.

O professor também destaca que não será uma solução única que irá resolver os problemas do Recife, mas a busca por um conjunto de fatores para avaliar e adaptar a cidade ao longo dos anos. Trata-se, portanto, de uma realidade que precisa ser pensada e encarada pelos diversos atores da sociedade.

Além disso, o alerta de entidades e autoridades para as mudanças climáticas e seus transtornos não é algo tão novo, como lembra Marcus Silva. Desde a década de 1970, pelo menos, existe uma tentativa mundial de virar a chave para redução das emissões de CO2, mas muitas nações do mundo não tinham noção da corresponsabilidade. 

“Não podemos perder a esperança. Estamos recebendo a consequência da imprudência de gerações anteriores, mas essa geração da gente tem o poder de transformar e não adianta jogar a responsabilidade para frente. Ninguém quer arcar com qualquer custo e termina transferindo a responsabilidade para outra gestão, outro momento. A gente ocupou um território que era marinho e agora a gente está pagando esse preço”, alertou o professor.

Intrinsecamente costeira e com uma planície central pouco acima do nível do mar, o Recife tem uma população estimada em 1.653.461 pessoas, segundo dados de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A cidade é, inclusive, a capital de estado mais antiga do País, pois sua fundação remonta a 1537, quase 500 anos atrás.

O geólogo e pesquisador do Climate Lab da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Fábio Pedrosa reitera a necessidade de urgência para um novo olhar sobre o Recife e suas problemáticas de origem natural, geológica e topográfica. 

“A cidade precisa se preparar melhor revendo e discutindo de forma muito séria e elaborada a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento. Se não tivermos competência técnica e social de entender, não temos condição, enquanto cidade, de enfrentarmos a questão da elevação do nível do mar”, alertou.

O professor lembra que o Recife é uma cidade muito baixa - a altitude média da capital pernambucana é de cerca de 4 metros acima do nível médio do mar - e em, alguns pontos, inclusive, a topografia indica que a rua ou o quarteirão está um pouco abaixo do nível da maré mais alta. “Se você caminhar por ruas de Santo Antônio ou São José, você vai ver que quando a maré está muito alta, a rua tem um pequeno alagamento e nem está chovendo”, acrescenta o professor Fábio, lembrando que a cidade também é rodeada de morros densamente povoados.
 
Uma das soluções apontadas pela Prefeitura do Recife para conter o avanço do nível do mar é a engorda da praia de Boa Viagem - processo que consiste em alargar a faixa de areia da orla de forma artificial. Em nota enviada à reportagem, a gestão destacou que o projeto está “na fase de atualização de estudos” e o próximo passo é a captação de recursos para a execução.

“Este é um importante projeto para a cidade e a gestão está empenhada em colocá-lo em prática o mais breve possível, mas com muita segurança para evitar danos colaterais que ocorreram em outras cidades”, informou a prefeitura. 

Marcus Silva destaca que esse tipo de projeto precisa entrar como política pública da cidade e não apenas de uma gestão, para que haja continuidade e transferência de responsabilidade entre os gestores.

“Temos que respeitar o espaço da praia e estamos sofrendo muito por termos ocupado. A Região Metropolitana do Recife avançou para o nível do mar. Se pegar qualquer outra orla, como Natal, João Pessoa e Maceió, há uma ocupação de orla diferente da nossa aqui. Temos que engordar [a praia], mas há um custo de manutenção porque isso não vai se manter”, frisou o professor. 

Além disso, o especialista destaca que o projeto não pode ser fruto da decisão de apenas um município, mas algo integrado, em um contexto metropolitano e estadual. “Não é só responsabilidade do Recife. A gente resolve o problema da gente e o problema dos outros termina contaminando. Precisamos de uma solução integrada e pensada num contexto um pouco maior. Você tem o mesmo problema em Olinda, Jaboatão e Paulista. Se você atua de forma errada, termina transferindo o problema para outro”, pontuou Marcus Silva.

Como é cortada pelas águas, o Recife necessitou aterrar, ao longo de sua história, diversos lotes de seu território para suportar o crescimento populacional. Muitos desses aterros foram feitos sobre áreas de manguezais, ecossistemas extremamente ricos e necessários para manter o equilíbrio ambiental. Por isso, defende Fábio Pedrosa, os mangues precisam de atenção redobrada por parte do poder público e da sociedade.

“Os manguezais fornecem uma proteção natural contra ressacas marinhas, avanço do mar e erosão costeira. A própria estrutura dos manguezais faz com que consigam absorver excedentes de águas tanto marinhas, quanto fluviais e pluviais [águas de chuvas]”, reforçou Fábio Pedrosa, que completou:

“Precisamos entender a importância para uma cidade com as características do Recife para a preservação dos manguezais remanescentes que ainda temos. Precisamos levar isso a sério como cidade que almeja chegar aos 500 anos com condições mínimas de habitação”. 

Além disso, também é necessária a discussão sobre a ocupação irregular e desordenada do sítio urbano recifense, por exemplo, nas áreas estuarinas, onde há a presença de uma população mais pobre e vulnerável. “É um desafio de toda a sociedade, não é uma discussão de ambientalista. Temos que ter uma sociedade mais participativa”, arrematou. 

Por fim, o professor destaca que os problemas ambientais se relacionam e não podem ser mais abordados apenas pelos ambientalistas engajados na discussão, já que são reflexo de um modelo predatório e desenfreado de utilização dos recursos naturais e de ocupação indevida de áreas ambientalmente frágeis, como os próprios manguezais. 

“É urgente que a sociedade, de uma forma geral e, sobretudo, para aqueles que moram numa cidade como o Recife, entendam que a questão ambiental precisa ser levada mais a sério. A sociedade precisa se engajar e cobrar mais medidas eficazes. Políticas públicas existem, mas muitas vezes são negligenciadas”, fechou Fábio Pedrosa.

A Prefeitura do Recife destaca que a cidade, que ocupa o posto de uma das mais vulneráveis aos efeitos da crise climática, é hoje “uma das protagonistas na busca por caminhos e soluções que dialoguem com a agenda global de sustentabilidade”. 

“A cidade vem se estabelecendo como exemplo de compromisso e de agenda climática forte e desenvolve políticas públicas locais que pautam o debate sobre a temática no Brasil. Ao longo dos últimos anos, a cidade vem adotando uma série de medidas através de um planejamento público para mitigação dos futuros impactos de forma coordenada, integrada e em parcerias locais e internacionais”, destacou a gestão, em nota.

Folha Pernambuco Foto Ilustrativa

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