Artigo - Estupro de vulnerável é crime hediondo, mas pode ser relativizado, segundo decisão do Superior Tribunal de Justiça

08 de Sep / 2021 às 23h00 | Espaço do Leitor

Antes de abordar o assunto que resultou na decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por julgamento unânime de sua 5ª Turma, vamos explicar o que significa ESTUPRO DE VULNERÁVEL, nos termos estabelecidos no art. 217-A do Código Penal Brasileiro, dispositivos a seguir reproduzidos:

“Código Penal Brasileiro

Art. 217-A – Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos (incluído pela Lei 12.015, de 2009)
Pena – reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. (Incluído pela Lei 12,015 de 2009)

No parágrafo (§) 1º a Lei 12.015 de 2009 acrescenta que “incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.

O parágrafo (§) 2º foi vetado, mas permaneceram os Parágrafos (§§§) 3º, 4º e 5º, com penas maiores para os casos previstos nos Parágrafos (§§) 3º e 4º e aplicação das penas previstas no caput e nos Parágrafos (§§) 3º e 4º. (§ 5º incluído pela Lei 13.718 de 2018).
“§3º Se a conduta resulta lesão corporal de natureza grave.

Pena – reclusão de 10) dez) a 20 (vinte) anos.

§4º Se da conduta resulta morte.
Pena – reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”

Observe-se que o Parágrafo (§) 5º impõe a aplicação de pena em qualquer situação, mesmo que a vítima tenha consentido com o ato sexual, ou na hipótese dela (vítima) já ter praticado ato sexual anteriormente ao estupro, isto é, ao crime.

Vale lembrar que o crime de ESTUPRO DE VULNERÁVEL, tipificado no art. 217-A do Código Penal Brasileiro passou a ser considerado CRIME HEDIONJDO, por inclusão do inciso VI, pela Lei 12.015/2009, no art. 1º da Lei 8.072/1990 - Lei de Crimes Hediondos – cujos delitos não foram definidos conceitualmente na redação da norma, tendo sido apenas relacionados nos incisos e parágrafos do art. 1º da Lei 8.072/1990.

Se é assim, pergunta-se: Por que o STJ afastou em julgamento unânime da sua 5ª Turma, a presunção do crime de Estupro de Vulnerável, isto é, estupro de vítima menor de 14 (catorze) anos?

É, como costumo dizer em palestras, a força da palavra “MAS” (uma conjunção coordenativa, que liga duas orações ou períodos, introduzindo frase que denota basicamente oposição ou restrição ao que foi dito, tendo como sinônimos, porém, contudo, entretanto, todavia), que retira do dispositivo legal a sua natureza absoluta e impõe em certos casos a relativização. Ou seja, a Lei está dispondo que devem ser aplicadas as penas previstas no caput do art. 217-A e nos seus Parágrafos (§§§) 1º, 3º e 4º, “independentemente do consentimento da vítima, ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”.

“Mas”, considerando que a vítima, mesmo menor de 14 (catorze) anos (portanto, vulnerável, nos termos da Lei), tinha consentimento dos pais para namorar rapaz de 20 (vinte anos) e que após relação sexual consentida pela menor, ela engravidou e foi morar com os pais do rapaz, formando-se uma família, a natureza absoluta da Lei para aplicação da penalidade “independentemente do consentimento da vítima, ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”, perdeu a sua força, dando lugar à natureza relativa do rígido texto da Lei, como se constata a seguir.

É que o rapaz de 20 (vinte) anos, que engravidou a menor de 14(catorze) anos, nos termos das disposições contidas no art. 217-A e seus parágrafos, foi condenado em 1ª instância, a cumprir uma pena de 14 (catorze) anos, tendo sentença confirmada em 2ª instância, mas absolvido pela 5ª Turma do STJ (3ª instância), que afastou, de forma excepcional, a presunção de ocorrência de ESTUPRO DE VULNERÁVEL, conforme dispositivos citados.

Essa absolvição do rapaz de 20 (vinte) anos foi considerada excepcional, porque o próprio STJ “tem tese fixada em recursos repetitivos segundo a qual o consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime”, como lembra reportagem publicada na Revista Conjur, de 25 de agosto de 2021.

“Mas”, volto a repetir, a letra dura e fria da lei cedeu lugar à análise de nuances do caso concreto, no entendimento do Relator, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, propondo no seu voto apresentado aos demais membros da 5ª Turma do STJ, a aplicação de um distinguishing, isto é, de uma distinção para a tese (afinal, era uma excepcionalidade), porque a manutenção da condenação do jovem de 20 (vinte) anos, a pena de 14 (catorze) anos de reclusão em regime fechado, poderia causar injustiças irreparáveis.

Para o ministro relator do caso, “as situações devem ser sopesadas” (analisadas) de acordo com a sua gravidade concreta e com sua relevância social, e não apenas pela sua mera submissão ao tipo penal, porque o caso julgado pela 5ª Turma era de um adolescente que iniciou namoro com menor de 14 (catorze) anos com a permissão e o consentimento dos pais dela e desse relacionamento nasceu um filho.

De forma consensual eles decidiram morar juntos na casa dos pais do adolescente, que trabalha para sustentar a família, enquanto a menor continuou estudante e desejou manter a união com o réu.

O Relator, Ministro Reynaldo Soares, registrou no seu voto que “a incidência da norma penal, na presente hipótese, não se revela adequada nem necessária, além de não ser justa, porquanto sua incidência trará violação muito mais gravosa de direitos que a conduta que se busca apenar”.

Para o Relator, a disposição absoluta contida na Lei, buscando proteger a vítima menor de 14 (catorze) anos, impondo uma decisão condenatória ao adolescente “acabaria por deixar a jovem e o filho de ambos desamparados não apenas materialmente mas também emocionalmente, desestruturando a entidade familiar que é, também, protegida constitucionalmente”.

O Ministro Relator considerou também que a condenação do adolescente-pai causaria danos a outro bem jurídico protegido pela Constituição, que é a proteção à primeira infância, já que o filho do casal seria impedido do convívio com o pai, tudo em desconsideração aos anseios da vítima e sua dignidade enquanto pessoa humana.

E concluiu o seu voto registrando que a proclamação de uma censura penal naquele caso seria intervir inadvertidamente na nova unidade familiar de forma muito mais prejudicial do que se pensa sobre a relevância do relacionamento e da relação sexual prematura entre a vítima e o réu.

E o “Mas” prevaleceu sobre o absolutismo da Lei, tornando relativa a sua interpretação num caso concreto.

Josemar Santana é jornalista e advogado, especializado em Direito Público, Direito Eleitoral, Direito Criminal, Procuradoria Jurídica, integrante do Escritório Santana Advocacia, com unidades em Senhor do Bonfim (Ba) e Salvador (Ba). Site: www.santanaadv.com / E-mail: [email protected]

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