Tragédia anunciada é um termo utilizado para definir quando uma situação de catástrofe está não só prestes a acontecer, mas aparentemente já se tornou irreversível; infelizmente é o percurso que a Bacia do São Francisco parece percorrer.
Um dos mais importantes cursos de água do Brasil e da América do Sul descoberto há 520 anos a serem completos logo mais em 4 outubro de 2021 sofre ao longo de sua existência a pressão do desenvolvimento.
Comprimido pelo crescimento das cidades, degradado por receber toneladas de dejetos, esgoto, materiais tóxicos diariamente, é assim que dezenas de espécies do Velho Chico já nem é possível encontrar. Assoreamento, canalização, curso modificado; são esses fatores contribuintes para o grave problema de degradação.
Não bastasse todo esse processo, um fator muito importante também tem destaque nesse cenário; as usinas hidrelétricas instaladas há mais de duas décadas no Rio São Francisco, são, com certeza, os símbolos mais evidentes do desenvolvimento. Há anos servem para proporcionar às cidades a capacidade de energia elétrica, fator importante na construção das sociedades modernas, no entanto, são elas que exercem atualmente um das maiores pressões sobre as águas do Velho Chico e consequentemente nas cidades ao longo de suas margens.
A partir delas, a vazão do rio passou a ser controlada, justamente para proporcionar o armazenamento e a geração de energia. O problema está no fato de que esse processo está andando cada vez mais separado do fator humano, ou seja, pela demanda crescente para a geração de energia, os demais usos da água não estão ocupando o mesmo lugar de importância nessa cadeia.
A pesca que sustenta milhares de famílias, o turismo que gera renda, a navegação que também possibilita o desenvolvimento com transporte de cargas, além da própria geração de alimentos e um dos usos mais básicos para a sobrevivência das espécies; o consumo humano e animal, ou seja, ter acesso a água de qualidade e em quantidade suficiente para cada indivíduo. Muitas cidades já enfrentam racionamentos há anos. Com a proposta dos poderes públicos de que haja água nas casas apenas em dias alternados, a água demora muito mais do que o previsto para chegar às famílias. Seria, talvez, um sinal, de que as coisas realmente não estão bem.
No município de Cabrobó, interior de Pernambuco, a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) faz acompanhamentos diários através de relatórios sobre as reduções e aumento de vazão de todo sistema, desde a captação até as residências. A companhia afirma que essas mudanças de vazão têm significativa interferência no funcionamento e captação da água. “Porque requer aprimorações no sistema como um todo desde a retirada da água bruta até a estação de tratamento de água de cada município. Quando as mudanças climáticas acontecem sempre trás consigo algumas reações. Como a quantidade da água bruta fica alterada, na maioria das vezes para pior, necessita de mudanças no sistema e um aumento no uso dos produtos que auxiliam na purificação da água”.
No ano 2000, primeiro ano de um novo milênio que já chegava sob os prenúncios de tragédias, com o tão falado fim do mundo, o pesquisador João Suassuna já alertava sobre a pressão que o Rio São Francisco vinha sofrendo e seus efeitos sobre o ecossistema. Em um dos seus artigos ele pontuou. “A população nordestina precisa estar esclarecida sobre a real situação do sistema elétrico do país e, em particular, do Nordeste brasileiro”,
Há 21 anos ele apontava considerações ao analisar o projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, proposto pelo governo federal e já consolidado nos dias atuais.
“Nesse sentido, as prioridades dadas inicialmente ao Velho Chico, como a principal fonte geradora de energia elétrica da região (mais de 90% da energia gerada no Nordeste são provenientes do Rio São Francisco) e as projeções de perdas na geração advindas dos 127 m³/s de água a serem retirados do Rio com a transposição (a CHESF estima em 138 MW/h com prejuízos da ordem de R$ 70 milhões ao ano), são questões sobre as quais temos, insistentemente, alertado as autoridades para serem consideradas na proposta transpositória, quando forem tratados os assuntos relativos aos impactos ambientais na bacia hidrográfica do São Francisco”, afirmava além de listar outras questões.
“Além do mais, somadas a essas questões, temos que levar em consideração, também, as diminuições de vazão do Rio, ocasionadas pelos desmatamentos indiscriminados praticados em suas matas ciliares (provocando extinção de nascentes e assoreamentos em seu leito); pelas retiradas normais com a irrigação (estima-se, atualmente, em cerca de 340 mil ha já irrigados na bacia do São Francisco com um consumo de 170 m³/s) e pelas secas que normalmente assolam a região, causando sérios problemas à população”.
E com essa série de argumentos destacou a possibilidade do sistema elétrico entrar em colapso. “São esses elementos que têm embasado o nosso posicionamento com relação às possibilidades de o sistema elétrico nordestino vir a entrar em colapso nos próximos anos, caso o governo federal não tome as medidas necessárias para evitá-lo”.
Também nesse sentido, em 2011 o pesquisador falava sobre a redução volumétrica da bacia do São Francisco ao longo dos anos, considerando o estado de degradação, devido ao desmatamento na matas ciliares, ao lançamento de esgotos in natura, e, segundo Suassuna “à ineficiente gestão hídrica”.
“A construção de Sobradinho, em 1979, (represa com 34 bilhões de m³ de capacidade) regularizou a vazão média diária do rio, ao longo do Submédio e do Baixo São Francisco, em cerca de 2.060 m³/s. Essa vazão estabelecida no Velho Chico resolveu temporariamente os problemas de geração do Nordeste que, no entanto, continuou a se desenvolver, e os volumes do rio voltaram a ser insuficientes para atender, no ato da geração, às crescentes demandas energéticas da região (crescimento estimado de 2% acima do PIB regional). Desta forma, o consumo de mais volumes do São Francisco, no ato da geração, se tornou progressivo. Atualmente, as vazões regularizadas do rio, medidas em sua foz, são de cerca de 1.850 m³/s e com tendências ao declínio”. Declínio que, de fato anos após, se confirmou e ele completa, “A existência dessa via de mão dupla – demanda x hidrologia – vem transmitindo, às autoridades brasileiras, porém, a ideia de que a interligação do sistema elétrico é a alternativa mais plausível para os graves problemas de geração de energia que vêm ocorrendo com certa frequência, em todo território nacional. Mas não é isso o que a prática vem demonstrando. Falta aos responsáveis pelo nosso setor elétrico, uma maior sensibilidade no trato com as questões climáticas, sobretudo em relação às estiagens prolongadas, que anteriormente se restringiam ao Nordeste do país e que, agora, se manifestam em todo o território nacional”.
O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Lago de Sobradinho, Francisco Ivan de Aquino, lembra ainda de outros fatores.
“Problemas com o despejo de agrotóxicos no rio, desmatamento da mata ciliar, mineração, eólica, esgoto a céu aberto sem tratamento e dificuldades de mobilizar a sociedade contra tudo isto, em relação ao volume de água, mas temos o entendimento que estas questões têm haver com interesses econômicos como o agronegócio e produção de energia. O comitê de Sobradinho vem acompanhando as reduções de vazão e vemos que o problema também passa pela construção de barramentos como Sobradinho, Itaparica e Paulo Afonso que barraram o percurso natural do rio e o fez perder sua força provocando assoreamento e tirando a velocidade da água ao chegar na foz, hoje sendo engolido pela força da água salgada do oceano. Então, acredito que o maior problema continua sendo a falta de políticas públicas e desrespeito tanto às leis ambientais como à lei da natureza”, reforçou.
Em 2017, quando a bacia enfrentava um dos piores períodos de estiagem, o município de Casa Nova na Bahia precisava enfrentar a escassez sob a ameaça de faltar água para a população. Na época, principalmente o pequeno produtor, foi um dos mais prejudicados por não ter condições de levar água até as suas culturas, devido à distância do lago, causando perda na renda familiar. “Com a baixa do lago atual a maior preocupação hoje continua sendo os pequenos produtores, que irão novamente sofrer com o afastamento das águas e sem capacidade de se aproximarem de suas propriedades, colocando em risco o sustento familiar”, destaca o Superintendente da Agência Municipal do Meio Ambiente, da cidade de Casa Nova, Isael Amaral Assis Batista.
Também à frente da preocupação com a garantia dos múltiplos usos, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) vem propondo a ampliação do debate quanto às flexibilizações das vazões nas hidrelétricas instaladas no São Francisco. O propósito é lembrar também às pessoas a importância do consumo consciente.
“Especialmente em uma situação muito desfavorável devido a ausência de chuvas na área dos principais reservatórios do país, nesse momento se faz cada vez mais necessário alertar sobre o consumo consciente e responsável da água quer seja para a agricultura ou para qualquer outro uso, mas fundamentalmente para que tenhamos a garantia do consumo humano e animal; então é exatamente por isso que em um momento como este de crise hídrica precisamos ter consciência da necessidade do consumo responsável e por isso o Comitê tem lutado bastante, inclusive para conscientizar as pessoas no sentido de que todos entendam a importância da água para a vida”, ressaltou o Coordenador da Câmara Consultiva Regional do Submédio São Francisco, Julianeli Lima.
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