Dá para perceber a animação da Natalina dos Santos de longe. Ela chega sorrindo, com um turbante vermelho combinando com a blusa. Natalina podia ter esperado em casa pelos alimentos entregues à população da pequena cidade localizada no sertão do Rio São Francisco.
Por ela morar em uma comunidade ribeirinha, distante do centro de Pilão Arcado (BA), os alimentos do PAA são enviados pela prefeitura até sua casa. Mas como Natalina estava ansiosa, acabou encontrando os funcionários da prefeitura na casa da vizinha. “Eu moro ali, minha filha, naquele barraquinho, você bota aí que moro sozinha, só eu e Deus”, diz Natalina.
PAA é a sigla para Programa de Aquisição de Alimentos, um programa criado em 2003, no qual o governo compra alimentos de agricultura familiar local e os entrega às pessoas em situação de insegurança alimentar.
Natalina é uma das 116,8 milhões de pessoas no Brasil que convivem com algum grau de insegurança alimentar. A falta de disponibilidade e o acesso aos alimentos atingiu em 2020, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, metade da população brasileira (55,2%). Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).
A pesquisa, realizada em dezembro de 2020, mostrou que pessoas como Natalina - mulheres, negras, entre 50 a 64 anos, sem escolaridade, moradoras das regiões Norte e Nordeste do país e da área rural - têm mais chance de terem insegurança alimentar grave.
No Norte, 18,1% da população passa por essa situação e no Nordeste, 13,8%. Comparando com o Sul e Sudeste, as regiões Norte e Nordeste tiveram o triplo e o dobro de número de domicílios expostos à insegurança alimentar grave respectivamente.
A precarização das relações de trabalho e o aumento do desemprego também colaboram para o aumento da fome. A fome no país foi quatro vezes superior entre as pessoas com trabalho informal e seis vezes superior entre as pessoas desempregadas.
O momento emergencial fez com que mais de 800 organizações da sociedade civil apresentassem ao Governo Federal uma proposta para o fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O governo respondeu à pressão social e liberou R$ 500 milhões para o PAA emergencial.
O agricultor Joelson Nascimento, 28, ficou sabendo que o PAA emergencial estava liberado para Pilão Arcado um dia antes de fechar o prazo de inscrição no programa. "Falaram que não tinham agricultores cadastrados e que não tinham produtos [no município]'', disse Joelson.
Por ser técnico agrícola e integrante da Associação de Técnicos em Agropecuária e Apoiadores da Agricultura da Bahia, ele estranhou a informação que deixaria a cidade baiana de fora do PAA. Afinal, o que não falta na cidade são agricultores. Pilão Arcado tem 35 mil habitantes. Aproximadamente 80% da população vive na área rural e cerca de 70% dos moradores da área rural vivem da agricultura. Apesar disso, o município tem um índice alto de insegurança alimentar. Joelson garantia: usando a produção local para alimentar quem tinha fome, daria para atender a cidade e ainda sobrava. Parecia só uma questão de falta de comunicação, então, ele mesmo resolveu o problema:
''Tive que cadastrar 21 agricultores em 24 horas. Peguei todo o processo, me responsabilizei, fiquei por minha conta'', diz Joelson.
Feito o cadastro dos agricultores, foram disponibilizados R$ 90 mil para o PAA, no município, para serem gastos entre janeiro e junho de 2021. Mas como é a primeira vez do programa em Pilão Arcado, esse processo não foi tão simples, explicou Sineide Soares, 35, assistente social da prefeitura há 11 anos. A primeira compra acabou sendo realizada só em abril e 120 pessoas foram beneficiadas.
Em abril deste ano, na primeira etapa do PAA, em Pilão Arcado, foram distribuídos 1,5 tonelada de alimentos. Para que o dinheiro do programa, destinado ao município baiano, fosse usado completamente até junho, seria preciso comprar aproximadamente 19 toneladas de alimentos dos agricultores na segunda etapa realizada na última semana de maio.
Como era o dia anterior da coleta com os agricultores, o celular da professora universitária e engenheira agrônoma Cândida Lima, 34, não parava de tocar. Ela fazia o levantamento de alimentos produzidos torcendo para chegar ao maior número possível para conseguir utilizar todo o valor obtido. '' [Na primeira etapa], eu pensei: 'gente, não acredito, eu tô vivendo um sonho, para tudo, o que é isso?'. A gente de fato se surpreendeu com o quanto os agricultores se dedicaram nesse processo, o quanto eles estão preparados para uma demanda muito maior. A gente limitou porque a gente tinha receio na questão da verba que tinha disponível, mas isso foi uma falta de experiência da gente'.
Rosinaldo Viana, 39, é um dos agricultores que fez a venda de alimentos para o PAA de Pilão Arcado. Quando ele tinha cinco anos, a família mudou para São Paulo para tentar uma vida melhor. "Fomos como retirantes. Meu pai participou de uma invasão e pegamos um lote. Era favela mesmo, em Diadema. Não fomos felizes, sofria muito bullying, 'paraíba, nordestino', essas coisas."
Em São Paulo, Rosinaldo trabalhou na indústria metalúrgica por 12 anos, "mas teve uma hora que eu falei: 'tenho que retornar'. Lá em São Paulo a gente está dentro da gaiola, aqui tinha liberdade."
Quando voltou para Pilão Arcado, em 2011, o agricultor desenvolveu um sistema de captação de água para conseguir produzir alimentos durante o ano todo. "Eu via o sofrimento da minha mãe com a bacia na cabeça.". Poucos agricultores em Pilão Arcado conseguem captar a água de um poço para a produção. A maioria produz em estruturas sazonais, em uma época do ano específica — de novembro a abril — conhecido por eles como inverno por ser o período da chuva. Pelo principal bioma de Pilão Arcado ser a caatinga, o município do semiárido nordestino é afetado por secas extremas e períodos de estiagem.
Rosinaldo acredita que o levantamento de alimentos feito pelo PAA foi importante para mostrar para a prefeitura a força dos agricultores de Pilão Arcado.
A maioria dos produtos [alimentos consumidos no município] vem de Juazeiro, Petrolina, mas poderia vir daqui. A secretaria de agricultura poderia mobilizar e fazer um mapeamento, quem são esses produtores? O primeiro ano do programa é esse, agora cabe ao poder público continuar e botar ele pra funcionar, não só o PAA, mas fazer um espaço pro próprio pessoal da cidade tá comprando dos produtores daqui também.
Os produtos dos agricultores inscritos no PAA são levados pela prefeitura para o Ginásio de Esporte no mesmo dia. Lá, a equipe da assistência social organiza as filas para distribuição.
Luciana Lino dos Santos, 40, aguarda a sua vez na fila com duas amigas. Ela trabalha na limpeza do Mercado Municipal de Pilão Arcado e mora próximo ao centro do município com seus dois filhos e uma amiga.
"É caro pra gente comprar esses alimentos. Quando eu recebo [meu salário], eu compro o que precisa para uma alimentação saudável pras crianças. Aí, na semana seguinte, a gente já não tem [dinheiro]. O pagamento só sai dia 10, então daqui [27 de maio] até lá [10 de junho], eu como o mínimo possível".
Evitar situações extremas como a de Luciana é a meta do PAA. Foram 480 famílias que receberam os alimentos da agricultura familiar na segunda entrega do PAA emergencial em Pilão Arcado. Quando a distribuição para as famílias é finalizada, Cândida e Sineide se reúnem para fazer a checagem da quantidade dos alimentos distribuídos.
Nas duas compras, feitas em abril e maio, foram 12 toneladas de alimentos distribuídos e foi gasto a metade do valor disponibilizado para Pilão Arcado, R$ 45.810,66 -- o que preocupava Cândida e Sineide.
Mas Rose Pondé -- a Superintendente de Inclusão e Segurança Alimentar da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos da Bahia --, informou que o prazo do PAA foi prorrogado. Pilão Arcado e outros municípios que não concluíram as compras do PAA emergencial estão autorizados a finalizar a compra até novembro.
"Produção a gente tem, trabalhador rural a gente tem, esse projeto é um empurrão para que a gente consiga chegar nessa meta, para que a agricultura familiar do município não seja um paliativo, para que ela seja a sustentação", diz Cândida Lima. O programa serviu para mostrar à cidade a força de seus produtores rurais. E ele deve continuar:
"A gente está finalizando o PAA emergencial, mas trabalhamos para a implementação do PAA contínuo. Eu acredito que o PAA contínuo vai trazer a possibilidade de trabalho para 1.000 agricultores, essa é minha perspectiva a longo prazo", diz Cândida.
Rose Pondé explicou que por Pilão Arcado ter um nível alto de insegurança alimentar, a perspectiva é dar continuidade ao PAA no município: "A gente vai manter no nosso cadastro como um município que necessita ter a continuidade do PAA, aí vai depender muito da liberação do orçamento para o ministério supervisor, que é o Ministério da Cidadania".
A superintendente acredita que o PAA é fundamental para reduzir a fome no Brasil: "É onde conseguimos chegar com alimento mais rápido, de forma mais justa, mais sustentável e mais adequada à realidade de cada região".
Cândida lembra que Pilão Arcado é só um exemplo do que poderia acontecer no país todo. "Em alguns municípios, o PAA não foi implementado antes porque a administração municipal simplesmente não se interessou. O nosso país tem capacidade de produzir e alimentar gente sem precisar de outros lugares. Ninguém precisa passar fome no Brasil"
GABRIELE ROZA (DATA_LABE). Foto: Clara Castel. Essa reportagem faz parte da série de publicações produzidas como resultado do programa Laboratório de Jornalismo de Soluções, da Fundação Gabo e da Solutions Journalism Network, com o apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o jornalismo de soluções na América Latina.
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