Exterior do Barracão da Casa do Caçador. Foto: Cássio Costa
As quartas-feiras são dedicadas às divindades Xangô, Oyá, Obá - Orixás que são associados ao fogo, ao calor, a vida... É nesse dia da semana que os filhos-de-santo e também visitantes se reúnem nos espaços de terreiro para louvar as energias dos ancestrais. Contudo, o cenário pandêmico vem afetando esses locais litúrgicos. Em Petrolina, no sertão pernambucano, as cerimônias não estão acontecendo ou são realizadas restritamente.
No anoitecer da quarta-feira, dia 19 de maio, no Ilé Odé Okè Àse Ògòdó (Casa do Caçador) o que seria uma cerimônia acalorada para muitas pessoas se reduziu a contáveis dedos de uma das mãos. Enquanto a Ekede prepara o amalá – comida predileta de Xangó à base de quiabo, cortados miudinhos, cebola, azeite de dendê – o Babalorixá e os filhos-de-santo se organizam para a cerimônia que, embora tenha o número reduzido de pessoas, é preparada com o mesmo capricho.
Barracão da Casa do Caçador. Foto: Moacir Santana
Na cozinha, as mãos cuidadosas da Ekede, confirmada e devota da Orixá Obá, uma das esposas de Xangô dentro da mitologia iorubana, mexem com uma colher de pau a panela que está sendo preparada para ser oferecida à divindade. Vestida de branco, ela faz o preparo da comida com muito gosto, e chega a cantarolar baixinho as cantigas que saúdam o grande rei.
Xangô é um orixá quente que gosta de confraternizar. Materializado em um(a) iniciado(a) ele adora ser acompanhado de outras Orixás; Obá, Oyá, Oxum, compondo assim a corte do rei. Pai Denis de Oxóssi, Babalorixá da Casa do Caçador, conta mais sobre essa divindade...
Os filhos-de-santo da comunidade precisam chegar com antecedência para organizar os preparativos da cerimônia. Ao adentrar a casa, aguardam um pouco; tempo necessário para o que eles chamam de ‘esfriar o corpo’ e só então têm permissão de ir ao banheiro tomar os banhos de folhas e se vestir com as roupas brancas/ou coloridas, enfeitados com seus colares - cada um com as cores dos seus orixás. Após a higienização e se purificarem com as ervas, podem explorar o terreiro saudando cada assentamento, quartos dos santos e também as pessoas.
O quarto de Xangô já está preparado. Pela porta entreaberta, é possível perceber as luzes das velas, laços em tecidos vermelhos e as paredes feitas de pedra. Pai Denis, se prepara balançando o xeré - instrumento invocatório daquele Orixá - anunciando que a comida já pode ser colocada dentro do quarto. A Ekede a postos, ouvindo o signo sonoro caminha da cozinha até o quarto de Xangô segurando uma gamela, dentro está o amalá. Ainda fumegante, a comida acabara de sair do fogo, a fumaça ocupando o espaço e o cheiro do dendê exalando todo o caminho percorrido por ela. Para Xangô, quanto mais quente o amalá melhor.
A comida entra e todos se acomodam em frente ao quarto do santo. Pai Denis senta-se num pequeno banco ao lado da porta e, com olhar fixo ao quarto, pronuncia palavras em iorubá, saudando e referenciando as divindades do dia. A Ekede se coloca ao batente enquanto os dois yaôs arrumam uma esteira de palha e também se acomodam, posicionando-se de joelhos e cotovelos ao chão, por cima da esteira, e respondem aos cânticos, compassando palmas que produzem um som abafado. Entre palmas e cantigas, as emoções e arrepios movimentam o corpo. É uma cerimônia rica em fé e muita devoção. Kabiésile, Xangô!
Ainda não é tempo para cerimônias públicas
Desde março de 2020, os cânticos e o som dos atabaques estiveram silenciados em muitos terreiros. Os rituais que precisam acontecer são realizados com poucas pessoas e de forma restrita, apenas às pessoas frequentadoras daquela comunidade. Mas, no último 24 de abril, a bancada evangélica da Câmara Municipal de Petrolina apresentou projeto de lei para definir a atividade religiosa como prática essencial na pandemia. O projeto foi aprovado por 17 vereadores dos 18 presentes na sessão e o prefeito Miguel Coelho sancionou a lei 3.386 desde 10 de maio. Com o novo marco legislatório, Petrolina autoriza os templos religiosos de qualquer credo a realizarem cerimônias litúrgicas em situação pandêmica ou de calamidade pública, porém a maioria dos líderes afro-religiosos não concorda com essa lei.
Para o Babalorixá Denis de Oxóssi, a pandemia restringiu muito as atividades do terreiro. A manutenção e atividades religiosas estão sendo realizadas apenas com os membros do próprio templo. Sentando numa cadeira em frente ao quarto onde acontece o Amalá de Xangô em meio ao terreiro totalmente vazio, o líder religioso nos conta sobre as atividades realizadas no atual momento de crise sanitária.
“Estamos com tudo restringido, não está tendo as festividades nem os festivais. Apenas uma função de quinze em quinze dias que é o Amalá de Xangô, e é uma função interna e pouquíssimos filhos estão vindo”
O vento parece bem mais forte em meio ao templo vazio de pessoas. As plantas que demonstram a conexão da religião com a natureza balançam forte e os sons dos animais reafirmam a calmaria do espaço. Pai Denis apertando as mãos e com semblante preocupado e cabisbaixo nos fala, com firmeza, que o funcionamento do terreiro com capacidade total pode pôr em risco a vida dos religiosos. Mas esse semblante logo muda quando o mesmo descreve as cerimônias, como se não apenas pudesse lembrar, mas também visualizar cada festejo e cerimônia do qual aconteceu anteriormente naquele espaço, mas comenta sobre os riscos caso volte a realizar celebrações públicas.
Pai Denis em frente ao quarto de Xangô. Foto: Cássio Costa.
“O candomblé ele é muito visceral, muito próximo. Ele tem uma estrutura de comunidade e de família, as cerimônias não duram uma hora ou uma hora e meia. Elas duram um dia, dois dias ou três dias e durante esse período as pessoas estão em contato dentro do espaço do terreiro e isso gera um risco.”
Mesmo sem a presença de todos os membros do templo e do público em geral, o terreiro encontrou outras formas de se manter diante o momento de pandemia, como as consultas, que agora feitas de forma online, via chamada de vídeo ou ligação, contribuindo nas despesas da casa.
Entrada para o Barracão da Casa do Caçador. Foto: Moacir Santana.
A saudade na voz é indisfarçável, a calmaria do terreiro reflete a monotonia do que costumava ser agitado. Porém, mesmo após um ano de pandemia, Pai Denis acredita não ser a hora de voltar para as atividades normais, mesmo depois de tanto tempo. Para ele, ainda é tempo de priorizar quem realmente tem necessidade de sair e ir às ruas.
“A gente está num momento de caos muito grande, a cada dia uma descoberta e muita perca, estamos perdendo muitas pessoas. Não é o momento para abrir nada, deixar o essencial para que tem mais necessidade de ir às ruas e ir ao trabalho. E a gente que tem alguma forma de se manter sem funcionar, os terreiros, continuar fazendo dessa forma”
Para o Babalorixá e também Presidente da Associação Religiosa e Cultural Ilé Àse Opò Oyasidè Omi Òsún, Jorge Barbosa, as práticas religiosas são essenciais, mas não em situação de pandemia. Sua casa e seus filhos continuarão em quarentena, apenas realizando alguns rituais de manutenção, até que a segurança sanitária seja restabelecida. Jorge ainda aconselha, enquanto Presidente da Associação, que os povos de terreiro continuem com ritos internos, e que cerimônias públicas só sejam realizadas após controle da pandemia:
“A Associação não adere a lei. A propagação da covid-19 é rápida e o candomblé é uma religião tátil, que compartilha de alimentos e afetos; abraços e beijos de mão”
O candomblé sempre foi uma religião adaptável e faz parte da sua cultura esse processo de quarentena. Chamado de resguardo ou preceito as etapas após processos iniciáticos são condições que candomblecistas precisam passar para a reconexão com ancestralidade. Os atabaques silenciados também é uma forma de cultuar as energias da natureza. O momento não é de festejar, os Orixás pedem silêncio em respeito a vida.
Reportagem de Cássio Costa e Moacir Santana produzida para a disciplina Redação Jornalística II, do curso de Jornalismo em Multimeios da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, campus III, no semestre 2021.1, sob a orientação da professora Andréa Cristiana Santos e Isael Pereira, mestrando do PPGESA.
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