Aquele seria apenas mais um Circo, e dos pequenos, se não fosse o “Circo de Manhoso”. O nome do palhaço já chegara antes do primeiro caminhão carregado de tralha e euforia circenses; já entrara a meninada em polvorosa e um clima de buliçosa excitação invadira os ânimos de toda a cidade.
Muitos memoráveis palhaços passaram pelo Circo da nossa vida; mas, Manhoso, em especial, mexeu com o coração da nossa sensibilidade de menino; com a ousadia e o poder de arrebatamento do seu desconcertante magnetismo pessoal.
Não se utilizava, aquele que arrebatava as atenções e a cumplicidade de toda a cidade, do apelo cômico de uma maior extravagância na vestimenta, na pintura do rosto, na cabeleira ou na careca... nem de recursos como a erótica gravata levadiça; uma bengala ou bastão estilizados; chapéus e sapatos descomunais – como é comum entre os palhaços.
Era só ele e o público, com o seu jeito único e sedutor de fazer traquinagens com a voz; de andar, de gesticular, de sugerir uma ingênua malícia através de movimentos sutis e inusitados pantins... Era o despojamento de um inato talento pra dominar todas as expectativas, pra transformar em graça toda a energia coberta pela lona e abraçada pela empanada.
Toda noite tinha o seu espetáculo; e durante todo o dia seguinte a cidade repetia e se regozijava com as tiradas, músicas e parolagens com que aquele manhoso palhaço incendiara aquelas vidas.
Muitas “modas de palhaço” que ele cantava, valorizando cada nota de ironia, levava aquele público – já completamente entregue – ao delírio; e repercutiram por muito tempo.
Mesmo os mais batidos números de palhaço, como o da alma que senta no colo do palhaço, o do tocador de piano... com Manhoso tomavam outra dimensão e emplacavam como se fossem a maior novidade do mundo. Ele dava o seu tom de genial maneirismo a qualquer peça que o seu talento tocasse.
A sua esfuziante presença enchia o picadeiro, elevava o “poleiro”, fazia explodir toda a volúpia de cada um – ali, protegida pela lona –, com a licenciosidade daquele santuário da mais pura e picante malícia.
Manhoso trazia a pegajosa sedução do humor mundano na vibração do tecido da sua pele e a essência da irreverência circense no repertório e na picardia das suas irresistíveis anedotas, chinfras, cantigas...
Manhoso brilhou no firmamento do nosso imaginário na época e no universo em que outras estrelas, como os palhaços Pinicolino, Já-vem, Pindoba, Arrelia, Sassarico, Zé Gaiola, Ruela, Fosforito... também luziam com intensidade e gozavam de fama, perante o nosso “respeitável público.
Numa noite de espetáculo, durante a apresentação de uma acrobata, do alto do poleiro um menino que estava ao meu lado apontou pra um integrante do circo, que atentamente acompanhava aquela performance, junto à entrada das cadeiras: “Olha... aquele é Manhoso! ”
A partir daí, esqueci a atração do picadeiro e passei a me ater ao semblante concentrado e ao olhar seguro daquele que se me apresentava como a “identidade secreta” de Manhoso. Com muita curiosidade e uma ponta de decepção, guardei a imagem e a indagação de como aquele homem aparentemente comum se transformava no endiabrado palhaço que assanhava a nossa meninice.
Às vezes nos pegamos imaginando o que foi feito de Manhoso, em que remotos confins encostou as carências da sua velhice, se teve alguma criança – ou adulto que teve uma infância de encantamentos –, ao seu lado, nos seus momentos adversos.
Manhoso foi daqueles legados circenses que não foram embora com a lona do tempo; que passaram a fazer parte da trupe de um Circo que nunca desarmou o picadeiro e diariamente nos ajuda a reinventar o espetáculo, encenando e dando vida ao drama real das nossas vidas.
*Maurício Cordeiro Ferreira-diretor fundado do Sebo Reboliço, escritor e poeta
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