Quando a médica da UTI veio até mim e falou delicadamente: “Professor, precisamos intubá-lo”, não imaginei que sobreviveria por algumas semanas, sem consciência, em um outro mundo. Questionam-me frequentemente se, nessas semanas, conversei com Jesus Cristo, se vi meu corpo no leito hospitalar, se me encontrei com parentes que já se foram e coisas desse tipo.
Confesso que não. Ficaria até contente se tivesse reencontrado meus avós e meus pais. Mas nada disso aconteceu!
Na verdade, essa “aventura não voluntária” começara alguns dias antes, quando me senti um pouco fraco, sem apetite e com discreta “falta de ar”. Procurei o hospital numa sexta-feira e, no sábado, me telefonaram com a notícia:
— Seu exame deu positivo para o coronavírus.
Isolei-me em casa e tentei usar os medicamentos tradicionais. Não imaginava que essa viagem, felizmente com volta, duraria mais de 60 dias.
O estado onírico induzido pelos anestésicos, miorrelaxantes e outros medicamentos retorna vagamente à minha consciência, em especial nas madrugadas. Classifico como alucinações que são relembradas aos poucos, vacilantes, intermitentes; se descritas com a habilidade e a inspiração de Cervantes, dariam um novo capítulo da saga do “Cavaleiro de Triste Figura”.
Não sei por quê, mas eu tinha certeza de que estava internado em Limeira, no último andar de um edifício, com um restaurante de culinária portuguesa no térreo e que iria almoçar por lá um bom bacalhau. Outras imagens mágicas no meu delírio foram as decorações dos vários boxes da UTI. Eram todos diferentes, criativos e luxuosos. O box situado em frente ao meu era decorado com motivos caribenhos e eu podia desfrutar, pela “janela do box”, a paisagem com folhas de palmeiras balançando ao vento e o azul-turquesa do mar do Caribe. Outro detalhe é que fazia parte dessa decoração um pôster de Mohamed Ali e o paciente que ocupava o leito, com covid-19, seria um egípcio do Cairo.
Mas o que tornou minha viagem onírica mais interessante foi a identidade que conferi ao anestesista. Explico: sou admirador de um filme nacional chamado Tempos de paz, cujo ator principal é Dan Stulbach. Pois bem, ele próprio, o Dan Stulbach, era o anestesista da UTI. Mais curioso é que, no filme, Dan representa um ator polonês, Sr. Clausewitz, que tenta entrar no Brasil em janeiro de 1946, passando-se por agricultor e é barrado pelo delegado da polícia de imigração de Getúlio Vargas, vivido por Tony Ramos.
O filme é fantástico e a interpretação de Dan é inesquecível: ele vive Segismundo, personagem da obra de Pedro Calderon de la Barca, intitulada La vida es sueño. Imperdível e inesquecível o monólogo que interpreta. Pois bem, passei a chamar o anestesista de Sr. Clausewitz, o que fez com que a equipe médica da UTI levantasse a hipótese diagnóstica, felizmente não confirmada, de demência senil. Outro detalhe é que esse anestesista estaria lançando no mercado uma cerveja de nome TAB (não imagino de onde tirei isso) e ele próprio fazia propaganda da sua cerveja na UTI…
Não resta dúvida de que o estado de alucinação me ajudou a suportar os períodos em que não estava totalmente anestesiado. Mas veio a seguir a outra etapa: adquiri um derrame no tórax e um pequeno infarto na base do pulmão esquerdo. Esse processo levou-me a uma punção para drenagem e, de presente, a colocação de drenos para coletar o líquido que ainda lá ficou. Foram mais dez dias com antibióticos de última geração na veia, além de uma sonda no estômago para alimentação. Capítulo à parte do tratamento foram as injeções matinais e vespertinas de anticoagulante. Pelos meus cálculos foram mais de uma centena, com um detalhe: as injeções eram aplicadas intradermicamente no abdome.
O último desafio que estava por vir se iniciou quando a enfermeira e a fisioterapeuta me disseram: “O senhor precisa andar!”. Mas eu não conseguia, não tinha forças nem coordenação e muito menos equilíbrio para fazer aquilo que aprendera havia 74 anos. Apoiado dos dois lados, dei uma dúzia de passos até uma balança e vi que o vírus havia me consumido treze quilos. Grande parte de músculo!! Esses poucos passos foram para mim tão cansativos e gloriosos como provavelmente o são para um atleta ao terminar a maratona olímpica. Começa então um trabalho muito importante e estafante que é reaprender a levantar, andar, sentar, subir e descer escadas, agachar.
A outra surpresa foi voltar a me ver no espelho depois de quase quarenta e cinco dias. Que susto! “Meu Deus, não sou eu!” O consumo dos músculos das têmporas fez de mim uma figura esquálida, semelhante àquelas que eu discutia com os alunos de Medicina no curso de Semiologia. Precisaria refazer meus músculos, mas… cadê a fome? A insistência e dedicação da minha esposa e o auxílio dos suplementos alimentares fizeram-me, pouco a pouco, reconstruir os músculos e as suas funções.
Depois deste período insólito aprendi como é maravilhoso poder levantar, ver o sol nascer, ouvir a guitarra de Paco de Lucia, brincar com a Terra (minha fidelíssima cachorra, companheira constante quando estou em casa), conversar com a minha esposa, rever as netas, os filhos, os enteados, os amigos e poder agradecer a Deus, aos médicos, aos enfermeiros, aos auxiliares de enfermagem, às fisioterapeutas, às fonoaudiólogas, às nutricionistas, que colaboraram para que eu recuperasse a autonomia. Como é bom, pela manhã, dar uma volta até a banca de jornais e cumprimentar a todos que encontro pelo caminho, ainda que de longe e de máscara, voltar a trabalhar, ir à feira aos domingos, ao supermercado e rever os locais onde vivi minha infância na Vila Tibério.
Enfim, confirmar uma vez mais: A vida é bela!
José Ernesto dos Santos, professor sênior da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP
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