Ele não era dali, mas já mantinha encravada a sua presença na imagem da feira de Ouricuri, Pernambuco como a aparente ausência dos olhos na profundidade da sua cavidade ocular.
O semblante, os trejeitos e a voz dele já nos eram familiares, como os cheiros de macaúba, coco catolé, pequi, jatobá... como a vibração do calor ardente nos corpos e nas mentes; o aceso burburinho e o vai e vem de gente, interesses, euforias e frustrações – efervescências que movem as feiras de rua.
Os pés de In-ãn-ia já conheciam cada pedra de calçamento daquelas ruas. Já pertenciam, aqueles ares, à intimidade dos seus sentidos; sabia estar em um dos terreiros da sua casa – a estrada musical do Sertão –, do seu universo existencial. Ali, onde ganhou a alcunha que tanto o incomodava, também se sentia distinguido – era conhecido e a sua peleja musical tinha uma inconfundível ressonância.
Logo cedo chegava e se aboletava, como tantas outras daquelas já esperadas e sempre festejadas – especialmente pela meninada – atrações do dia da feira, invariavelmente na sombra da castanhola da esquina de Seu Teófilo Lins com a bodega de Babá, e das calçadas desta até o Grupo Telésforo Siqueira e do açougue municipal.
Ali, pairava a energia de uma envelhecida e vigorosa corrente de arte curtida e entrelaçada numa travessia que vem de tempos primitivos. In-ãn-ia aparecia como se advindo do abandono de um mundo entranhado muito pra lá das encostas da Serra do Araripe.
Vinha como que através de elos sanguíneos de um povo em cujos costumes os nobres se vestem com andrajos e perambulam, com passos errantes e melodias incisivas, pelas ondas viscerais da sua música ancestral.
Nos primeiros tempos, conduzia às costas um surrado violão e, se deslocando de um ponto para outro e, quando da chegada ou da saída, não era perdoado pelos gritos de meninos e gracejadores em geral, sempre de plantão na porta de bares, bodegas e do açougue; em volta das bancas ou numa esquina qualquer:
– In-ãn-ia, o violão caiu! ...
A partir daí desencadeava-se uma desaforada reação por parte daquele que trazia uma renhida disposição para a autodefesa – comum entre os cegos de rua – e, no seu caso, ampliada pela sensibilidade de artista, resultava num rosário de resmungos de irritação; o que levava os seus fustigadores a um êxtase de sadismo.
In-ãn-ia foi, como muitos outros, um músico de rua no tempo em que estes eram confundidos com e tratados como mendigos. Diferente dos pedintes, que apelavam para a misericórdia dos transeuntes, em função do estado de miséria e ou de deficiências físicas em que se encontravam, In-ãn-ia e seus pares invocavam a paga da assistência que fazia roda em volta deles e apreciava as suas atávicas e arrebatadoras apresentações.
Do final dos anos 1960 para o início dos anos 70, aquele nosso carismático vate trazia no seu repertório além das cantigas, versos e temas instrumentais da nossa tradição ancestral; canções que foram ou eram sucessos de rádio, naquele período; entre elas, várias guarânias como Índia e Cana Verde – Abra a porta ou a janela – gravada por Tonico e Tinoco (1958). Como fruto da dinâmica cultural, algumas dessas canções ou temas musicais, que foram adaptadas e gravadas, já tinham sido colhidas no manancial da tradição popular – como é o caso da célebre “Asa Branca”.
Pelas feiras do Sertão, numa mambembe peregrinação, vinha uma legião de pedintes, músicos, cordelistas, repentistas e outros artistas itinerantes; entre eles os cegos rabequeiros como In-ãn-ia e o Cego Oliveira. Na nossa região seguiam o espontâneo roteiro do que chamamos de um “circuito de mendicância”, que ia de Juazeiro do Norte (CE) – “a Meca dos pedintes do Sertão” – `a Juazeiro da Bahia; num ciclo que envolvia parte do Cariri cearense, do Araripe pernambucano e do submédio São Francisco.
Trazia, o nosso precioso menestrel, inconfundíveis traços fisionômicos, tendências existenciais – como a necessidade de viver com liberdade de espaço e movimentos e a essência poético-musical dos Índios Cariris; que viveram e sacralizaram, com seus místicos passos, o solo do mesmo território.
Muito do que In-ãn-ia arrastava no bojo essencial da sua existência ficou nos traços e nos teores mestiços das imagens e dos valores que se fizeram determinantes nas nossas vidas.
*Não havendo grafia exata para a pronúncia da alcunha – que imaginamos ter a sua origem no nome de Inhana, integrante da dupla Cascatinha e Inhana – cantores do rádio e do disco, de grande sucesso nacional nos anos 1950\60 –, aplicamos esta, por acharmos que seja a que mais se aproxima.
PS: – Um dado sugestivo é que o nosso In-ãn-ia tinha no seu repertório várias guarânias; o mesmo gênero que marcou a carreira da dupla Cascatinha e Inhana.
– Parte substancial da memória e das reflexões sobre In-ãn-ia, que desaguaram neste texto, são reflexos das constantes conversas que mantenho com o amigo e poeta ouricuriense Virgílio Siqueira.
Texto: Mauricio Ferreira-diretor fundador do Sebo Rebuliço
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