“Em meio a tanta turbulência, foram momentos felizes que eu não esperava”, conta ele ao Estadão, por telefone. “A julgar pela reação dos leitores, acredito que o livro atraiu por apresentar um Brasil rural, que parece algo anacrônico nos dias de hoje, mas provoca uma memória afetiva, mesmo para quem não viveu no campo.” É possível acrescentar ainda sentimentos de sofrimento e desejo de libertação.
Itamar é geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Com tal formação intelectual, ele constrói narrativas ao mesmo tempo sólidas e delicadas, alicerçadas por uma linguagem apurada. É o que se pode notar em Doramar ou a Odisseia (Todavia), livro com 12 contos que será lançado nessa semana . Alguns já foram publicados esparsamente, mas cinco são inéditos.
E, novamente aqui, o escritor se apoia em personagens que impressionam pela força e legitimidade: mulheres determinadas a enfrentar todo tipo de adversidade, escravos dispostos a resgatar a dignidade à força, indígenas buscando apoio na ancestralidade e ainda a exaltação à figura do artista Arthur Bispo do Rosário, cujo manto é ponto de partida para uma narrativa sobre a marginalidade e a loucura.
A precisão que encontra para a escrita vem de uma certeza pessoal – Itamar acredita que toda boa história é precedida de uma rica experiência anterior do autor com suas personagens. “Sou um etnógrafo da imaginação – para que eu possa escrever, preciso conhecê-las bem, sua rotina, suas características. Só depois de ter adquirido um pouco desse conhecimento é que começo a escrever”, explica.
E tal vivência não necessita ser apenas espiritual – fruto de uma família em que predominam mulheres, Itamar logo descobriu os meandros do poder feminino que, embora oficialmente secundário por força da hierarquia masculina, era quem de fato tomava as decisões mais acertadas. “Elas nos transmitem uma força inabalável – perto delas, os homens são como pálidas sombras”, observa.
Itamar lembra que Salvador, onde vive, é uma cidade com população predominantemente negra, o que torna ainda mais forte a tradição afro que concede grandes poderes à mulher. “São as grandes sacerdotisas, cujo poder passa de geração a geração”, conta ele que, no exercício de sua profissão (é funcionário público), mantém contato com diversas pessoas que lhe fornecem tais impressões.
O conto Alma, por exemplo, um dos mais poderosos de Doramar ou a Odisseia, o leitor acompanha a fuga de uma escrava que tem por nome o título da história. À medida que anda, ela oferece fiapos da sua trajetória e do motivo que provocou sua fuga. Ao mesmo tempo, seu vestuário vai se deteriorando e as marcas da travessia ficam cravadas em seu corpo. A prosa, além de hipnotizante, oferece um final um tanto surpreendente e que permite ao leitor entender toda a triste situação.
Itamar consegue provocar o leitor também em A Oração do Carrasco, narrativa em que o estranho cuidado com sua profissão de executor de vidas logo revela um homem preso a uma tradição familiar e que, aos poucos, o autor estende para o cotidiano de qualquer pessoa. “Eu me perguntava como seria a vida de um homem carrasco e, aos poucos, percebi que estamos cercados por eles – afinal, basta observar o que aconteceu na operação da polícia civil na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro”, comenta o escritor, referindo-se à ação que resultou em 28 mortos.
Dessa loucura insana, é possível conhecer outra, mais produtiva, criativa e imortal em seu valor, que inspira o conto manto da apresentação, título escrito assim mesmo, com minúsculas. Como em um discurso sem fôlego (não há ponto final separando as frases), o texto apresenta a profissão de fé de Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), homem que criou sua arte a partir de objetos cotidianos que encontrava nas instituições onde viveu internado, criando uma obra que variava entre justaposições de objetos e bordados, o que lhe rendeu reconhecimento internacional.
“Encontro mulheres em posição de poder, que assumem seu protagonismo, o que é paradoxal, pois me pergunto: como pode, em uma sociedade tão patriarcal, existir uma força tão poderosa?”, questiona-se o escritor que, obviamente, transmite essa sensação para suas histórias.
“Foi um artista fenomenal e, a partir dele, refleti sobre o que é loucura”, conta Itamar. “Aos nossos olhos de hoje, seria mesmo um homem louco? O entendimento de sua obra nos mostra as dificuldades que ainda temos para entender a diferença entre as pessoas.” Para Itamar, Bispo do Rosário deixou um trabalho de poderoso sentido épico e religioso.
“Seria um chamado de Deus para a criação de um mundo bíblico que se revela no manto, que representa o mundo onde ele mesmo é o deus.”
De fato, com seus trabalhos, Bispo do Rosário criou uma espécie de inventário do mundo para o dia do Juízo Final, quando ele se apresentaria a Deus vestindo esse manto, que representaria os homens e as demais coisas existentes. O objeto, aliás, traz bordado o nome de pessoas conhecidas, para não se esquecer de interceder junto a Deus por elas. “A história dele é uma verdadeira epifania.”
Com os contos de Doramar ou a Odisseia, Itamar reafirma sua posição de grande escritor contemporâneo, posição que obviamente o deixa lisonjeado, mas que ainda não afasta o temor vivido por aqueles que alcançam o sucesso logo na primeira obra: como repetir o êxito no trabalho seguinte?
“Essa ansiedade existe e me serve como um desafio, pois sei que ainda tenho o que dizer”, conta ele, que já rascunha um novo romance, escrito nos intervalos de sua agenda ainda apertada, fruto da bem-sucedida estreia. “Escrevo tranquilo, livre de pressão, pois estou convicto em não permitir que Torto Arado se torne uma sombra em meu projeto literário.”
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