Próximo do prazo final da entrega da Declaração de Imposto de Renda (DIRPF) do exercício de 2021, em que milhares de contribuintes procuram acertar suas contas com a Receita Federal, alguns incômodos surgem no ar. Não apenas os que se referem a juntar comprovantes de renda, despesas, registros de imóveis, mas também os que se relacionam a sensação de injustiça fiscal.
Pagar impostos corretamente, sabendo que há tantos que não pagam o que deveriam, causa desconforto. Ainda mais quando se sabe que este não pagamento se deve, em grande medida, a mecanismos legais que beneficiam detentores de expressivas riquezas e fortunas.
Mais de R$ 650 bilhões é o valor que as classes mais ricas deixaram de pagar de imposto entre 2007 e 2018, por conta da regressividade das alíquotas do imposto de renda das pessoas físicas (IRPF) sobre os ganhos das altas rendas. Neste período, os contribuintes com rendas acima de 30 salários mínimos passaram a pagar cada vez menos imposto, ano a ano, ao contrário daqueles com rendas mais baixas, que pagaram mais a cada ano.
Quanto maior a faixa de renda, menor é a alíquota efetiva do IRPF, contrariando princípios básicos de progressividade e da capacidade contributiva. Estudo realizado pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF) “Concentração de Riqueza no Brasil”, comprova esses dados.
O imposto de renda deve(ria) ter caráter progressivo, incidindo mais fortemente à medida que se eleva a renda e onerando mais, proporcionalmente, quem pode pagar mais. Não é o que acontece! O imposto de renda só é progressivo até aproximadamente R$ 40 mil mensais, quando as alíquotas efetivas começam a cair e o imposto passa a ser regressivo. Essa distorção precisa ser enfrentada, especialmente pela aceleração do aumento da desigualdade causada pela pandemia. Mas essa injustiça não começou agora.
Ao final de 1995, foi aprovada a Lei 9.249/95, que isentou do IRPF os dividendos e lucros distribuídos às pessoas físicas e criou uma ficção chamada Juros sobre Capital Próprio (JCP). Com essas medidas, somadas à baixa tributação sobre patrimônio e heranças no Brasil e a ausência da regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto desde 1988, aprofundou-se a injustiça tributária mais escandalosa do país: os mais ricos pagam muito menos impostos que os mais pobres, proporcionalmente.
Durante a aprovação desta lei, uma das justificativas apresentadas foi a de que haveria integração entre pessoa física e jurídica, cobrando apenas na pessoa jurídica o imposto de renda e isentando na pessoa física. Engodo. Tal isenção foi acompanhada da redução da alíquota do imposto da pessoa jurídica de 25% para 15%! Beneficiou duplamente os detentores de capital social da empresa, reduzindo significativamente o imposto total.
Na prática, a medida desestimulou o reinvestimento dos lucros, pois favoreceu a distribuição e a remessa para o exterior destes lucros, isentando-os legalmente. Favorecimento a quem mais ganha e mais acumula com chancela oficial!
Além disso, essa isenção dos lucros e dividendos teve outro efeito prático, conhecido como “pejotização”. Para esta nova configuração, houve uma “transformação” das pessoas físicas que realizam atividades autônomas ou liberais e até assalariados, em pessoas jurídicas, erodindo a base tributável do IRPF. Ou seja, o IRPF acabou se concentrando mais nos rendimentos do trabalho assalariado, pois estas novas “pessoas transformadas” agora receberiam lucros e dividendos distribuídos, isentos!
Quanto aos Juros sobre Capital Próprio (JCP), outra “inovação” brasileira da Lei 9.249/95, a justificativa era de estabelecer condições de igualdade entre empresas que utilizam capital próprio e as que utilizam recursos de terceiros. Ora, se uma empresa dispõe de capital próprio, por que recorrer a de terceiros? Além disso, o pagamento de juros constitui remuneração de capital de terceiros e o capital próprio investido é remunerado por lucros e dividendos. Ou seja, justificativa que não faz sentido!
Esse pagamento dos Juros sobre Capital Próprio, que pode ser deduzido do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), é um benefício que reduz o valor deste imposto e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), portanto. E quando pago aos sócios e acionistas, está sujeito a uma retenção exclusiva na fonte de 15%, não se sujeitando à tabela do IRPF, diferente dos rendimentos do trabalho assalariado. Resultado: quem já ganha muito de um lado, o imposto na pessoa física também é menor. No fundo, esse pagamento de JCP aos sócios e acionistas, que aparenta ser uma despesa, representa distribuição de resultados com tributação inferior ao que seria correto.
Um imposto que deveria observar princípios de generalidade, universalidade e progressividade, acaba fazendo movimento inverso quando aplicados esses benefícios. Deveria incluir todas as rendas, oriundas do trabalho ou do capital, alcançar todas as pessoas físicas que recebam renda sendo trabalhadores, empresários ou autônomos e incidir mais conforme aumenta a capacidade contributiva da pessoa. Mas não observa essas condições e ainda trata de forma desigual contribuintes em situação equivalente, violando o princípio da isonomia.
O sentimento de injustiça que aparece fortemente nesta época de entrega de DIRPF é mais que compreensível. Além de injusto com o indivíduo, esse sistema também não é bom economicamente para o país. Na situação atual, retira renda de muitos contribuintes que movimentariam a economia consumindo bens e serviços, diferentemente dos super-ricos e bilionários que especulam e acumulam.
Existem alternativas tributárias para enfrentar essas distorções e já foram apresentadas ao Congresso Nacional pelos integrantes da campanha Tributar os Super-Ricos. Os eixos centrais das oito propostas entregues ao parlamento em agosto de 2020 são tributar mais as altas rendas e alterar a estrutura e limites da tabela do IRPF, o que poderia beneficiar aproximadamente 10 milhões de pessoas, tornando-as isentas. Desonera as pessoas de mais baixa renda e os trabalhadores.
Pela proposta da Campanha, apoiada por mais de 70 entidades, a tabela do IRPF terá seu número de alíquotas ampliado de quatro para sete, eliminando a alíquota vigente de 7,5%. Além disso, serão acrescentadas as alíquotas de 30%, 35%, 40% e 45%, indo além da atual alíquota máxima de 27,5%.
Com essa proposta estima-se uma desoneração tributária de aproximadamente R$ 15,6 bilhões, sendo R$ 11 bilhões para quem recebe até R$ 10 mil brutos. Até esta faixa de rendimentos, encontravam-se, em 2018, 78% dos declarantes (23,3 milhões de pessoas, conforme dados da Receita Federal do Brasil).
Esta mudança, ao ampliar a renda disponível líquida dos contribuintes que recebem até oito salários-mínimos, aproximadamente, terá um potencial econômico muito significativo. Para as rendas do trabalho mais elevadas, somente haverá mudança a partir de faixas de renda mensal superior a 35 salários mínimos.
Seriam mudanças extremamente positivas. Em caso de aprovação de todas as medidas propostas pela campanha, seria arrecadado cerca de R$ 300 bilhões ao ano, atingindo apenas os 3% mais ricos da população. Se pudermos alterar a estrutura da tabela e eliminarmos os benefícios indevidos, faremos maior justiça e progressividade ao IRPF, desonerando pessoas que ganham menos. Esses projetos estão prontos, mas não tramitam ainda no Congresso. Se fossem aprovados nesse ano, em 2022 teríamos mais justiça fiscal e menos revolta na declaração da DIRPF.
Não é uma revolução ou mudança completa de sistema. Mas um ajuste para gerar benefícios econômicos e sociais rapidamente, inclusive o de desobrigar milhões de brasileiros a apresentarem a DIRPF, pois são pessoas com rendas baixas que nem deveriam estar obrigadas a declarar. Só o fazem pela falta destes ajustes na legislação e omissão na correção da tabela do IRPF, que empurra mais e mais pessoas a uma prestação de contas injustificada, considerando seu rendimento tributável.
Muitos países se encaminham para cobrar mais dos mais ricos e tributar mais a renda do capital em comparação com a renda do trabalho. Devemos seguir essa tendência, obter recursos tributando os super-ricos. Reformas como as da previdência, trabalhista, administrativa e tributária (em curso) e continuidade do teto de gastos não chegam a ser inovações brasileiras. São políticas de corte neoliberais disseminadas dos países centrais aos periféricos há mais de 40 anos. Não são uma solução justa e economicamente boa para o país.
Ou mudamos o rumo ou continuaremos a ostentar o título de um dos países mais desiguais do mundo que acrescenta novos bilionários à lista da Forbes enquanto voltamos ao Mapa da Fome e da miséria. Está na hora de rompermos esse padrão. As soluções existem. Mas precisam ser realizadas.
* Maria Regina Paiva Duarte - Presidente do Instituto Justiça Fiscal, integrante da Coordenação da Campanha Tributar os Super-Ricos
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