UMA VIAGEM À ÁGUA NEGRA: RESENHA DE TORTO ARADO, DE ITAMAR VIEIRA JR

19 de Mar / 2021 às 23h00 | Espaço do Leitor

Leio como quem sente fome de alma. Por essa razão, tenho o hábito de iniciar conversas com pedidos de indicação de leituras. Minha rede de afeto também é trançada por livros compartilhados, de todos os gêneros e sabores. Um dia, pedi a uma dessas amigas com as quais troco autores, uma sugestão de leitura. Cheguei assim a Torto Arado.

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior[1], foi publicado pela Editora Todavia em 2019. Acima de tudo, é livro que é indicado de amiga para amiga para amiga. É leitura que entra debaixo da pele e se funde na gente. A trama se passa na Fazenda Água Negra, no Sertão da Bahia, no início dos anos de 1960. Nela vivem trabalhadores descendentes de uma escravidão abolida muito no papel e pouco no cotidiano – realidade que perdura até hoje em diversas regiões do Brasil. E é a história dessas trabalhadoras e desses trabalhadores que o livro apresenta.

Bibiana e Belonísia são as personagens principais do romance, composto majoritariamente por figuras femininas. Irmãs, vão desvelando a vida aprendendo a unir as duas vozes nas cordas vocais de uma só, por razões que merecem ser confidenciadas diretamente pelo livro.

Torto Arado é livro-transporte. Ao abrir as páginas, já não via mais quarto ao meu redor. Eu era Bibiana, irmã de Belonísia, e via à minha frente a mala de couro de caititu da minha avó Donana, com manchas e suja de terra, cena que inaugura o Torto Arado. Sentia em meu corpo a adrenalina transgressora de quem se arrisca a mexer em objeto proibido.

A narrativa é revezada entre as duas irmãs – na verdade, entre três personagens, porque o último capítulo traz uma surpresa de voz – mas entrelaça as narrativas de muitas gentes. É trama de desigualdade, porque os donos da terra não são os que pegam na enxada. É trama de violências, da fome, da falta, da seca, da agressão familiar, da perda, do medo. Sobretudo, é história de forças que brotam do solo, história de ancestralidade, luta e união. 

Toda a complexa rede de relações é costurada por meio de segredos compartilhados entre brincadeiras de jarê, cuja potência se descobre ao longo dos acontecimentos que as páginas do livro paulatinamente revelam. As dores, os encostos, as aflições, as doenças são todas levadas à mão de Zeca Chapéu Grande, pai das irmãs e curador do jarê, naquela terra em que não chegava médico nem remédio. As vidas de Água Negra, por sua vez, surgem das mãos de Salustiana, mãe das irmãs e parteira das gentes da região. Salu é “mãe de pegação” dos filhos e filhas das trabalhadoras da fazenda, que vinham ao mundo nascituramente marcados pelo destino único da labuta na terra seca.

No caminho à adultez, as duas meninas deparam-se com uma bifurcação de trilhos-trajetória: Belonísia torna-se personagem da vida da fazenda; à Bibiana, as injustiças daquela vida parecem irresignáveis. Belonísia mistura-se à terra arada, tortamente arada; Bibiana junta-se à luta pela emancipação e pelo direito à terra.  

Acompanhando as duas irmãs em suas jornadas, experimentei com elas sentimentos que, de tão bem descritos por Itamar, se coseram também em mim. Senti em minhas mãos terra, milho debulhado, feijão catado; pesquei no Rio Santo Antônio; acendi candeeiros e velas; vivenciei noites de jarê; avistei vagalumes; dancei festas de santos ao som de pífaro e atabaque; abriguei-me embaixo de umbuzeiro; vi secarem as plantações, as vagens, os pés de tomate, quiabo e abóbora; tornei-me também ciúmes, raiva, dor, falta, fome, encantamento, amor, ódio. Tudo como se as descobertas delas fossem minhas em igual medida.

O continuar da trama, com o perdão da grosseria, me recuso a resenhar para não tirar dos leitores e das leitoras o prazer de desvelar o mundo misterioso por detrás de Torto Arado. Recomendo, porém, que afivelem os cintos: iniciada a leitura, é viagem sem volta ao Sertão baiano, reconstruído por meio da elegante e talentosa escrita de Itamar Vieira Júnior.

NOTAS: [1] Itamar Vieira Junior é geógrafo e escritor brasileiro. Também é autor de livros de contos como Dias, publicado em 2012 pela editora Caramurê Produções, e A oração do carrasco, lançado pela editora Mondrongo em 2017. Pelo último livro, foi finalista do 60º Prêmio Jabuti na categoria “conto”.

*Juliana Ludmer é Mestra em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É escritora, poetisa e advogada.

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