A qualidade da obra de José Sarney é atestada entre outras medalhas pelo seu ingresso nas Academias de Letras do Maranhão e do Brasil e pela receptividade às múltiplas edições dos seus livros aqui e no exterior que o distinguem como festejado autor literário.
Do mesmo modo, sua trajetória destacada em três fases do percurso da nação faz dele um tipo raro de ator político que em grande medida foi também “autor”, várias vezes decisivo, do roteiro dos acontecimentos desses tempos, ajudando a escrever páginas marcantes da história do país.
Quando examinadas as explicações sobre o fenômeno da fragilização da democracia representativa ou democracia liberal, em torno do qual irrompeu nos últimos anos uma avalanche de livros e artigos, verifica-se um amplo leque de diagnósticos. Eles apontam causas que vão da frustração causada pelo crescimento das desigualdades acentuadas pelo chamado capitalismo tecnológico, passam pelo efeito disruptivo das crises econômicas e chegam até o generalizado acesso às plataformas que revolucionaram a comunicação entre os indivíduos permitindo-lhes inédita capacidade de mobilização e protesto contra as instituições. Não esquecendo o fantasma da inteligência artificial ameaçando substituir a consciência coletiva por algoritmos autonomizados.
Se há desencontros quanto à etiologia, praticamente não os há quanto à identificação dos sintomas: polarização social e ideológica, partidos e parlamentos rejeitados, solidariedade social sabotada, erosão dos ideais democráticos. Tudo isso deixando o terreno fértil, em meio ao déficit de razoabilidade do debate público, para o triunfo dos populismos. Porém, muito embora essa literatura já seja volumosa, ela praticamente não ressalta, com a ênfase devida, que a fragilização paulatina da democracia se faz acompanhar pelo desvanecer de uma certa elite política preexistente, uma outra importante causa e também efeito desse processo.
Quando rareiam os líderes comprometidos ética e culturalmente com a democracia, caracterizados pelo exercício da prudência e da tolerância nos limites da razão, provados pela experiência de carreiras exitosas cuja principal chave terá sido a persuasão dialogal, percebe-se a olho nu a alteração qualitativa do cenário. Com acentuado empobrecimento cognitivo a política vai desaprendendo a capacidade de escutar os contrários. E sobressaem novas lideranças do tipo carismático populista que terminam por se mostrar ultrassensíveis aos limites das esferas constitucionais. Para elas, o manejo das crises pode ser sempre uma dança à borda do precipício.
José Sarney simboliza aquela parcela diferenciada da elite política brasileira que na República se mostrou capaz de protagonizar os acontecimentos, movendo-se em meio às suas circunstâncias, tendo os ideais democráticos como bússola. E em se tratando da nossa realidade, não foi nada fácil.
Como os melhores analistas descreveram, a República no Brasil estava fadada a acontecer pela inviabilidade do terceiro reinado e pelo esgotamento do poder moderador que pairava sobre um parlamentarismo que funcionava sem opinião pública organizada. Uma vez instituída, em todas as suas fases as crises seriam uma constante. Derivadas quer da heterogeneidade dos interesses em um país continental, quer dos elevados níveis de desigualdade em uma sociedade de baixa renda média, quer do modelo presidencialista que adotamos acompanhado de extensa fragmentação parlamentar. Desenvolvendo uma tipologia que esgota o glossário da matéria. Crises de participação, de representação, econômicas, sociais, éticas, de confiança nas instituições, por conflito dos poderes do Estado. Algumas vezes se superpondo na tempestade perfeita da “crise geral”.
Ao procurarmos resumir de forma sequencial as etapas da nossa história vale lembrar, de início, que diferentemente dos franceses não temos o hábito de incorporar às narrativas a numeração das nossas fases Republicanas. Poucos se dão conta de vivermos hoje o sexto capítulo da série que foi iniciada com a deposição daquele que para alguns foi o mais Republicano dos imperadores, inaugurando a Primeira República. Com interstícios autoritários, eleições “a bico de pena”, política de governadores, restrições à participação e revoltas sucessivas. Não obstante, ela foi longeva, sobrevivendo 41 anos. Ao seu final, chamada de “Velha”, foi posta abaixo pela Revolução de 30 que levou o país à 2ª República. Esse período, fruto de uma ruptura que pôs de cabeça para baixo a arquitetura político-institucional das décadas anteriores e coexistindo com um mundo em ebulição assistiu a uma guerra civil (Revolução Constitucionalista) e viu a polarização ideológica ganhar fôlego com os comunistas (1935) e integralistas (1937) recorrendo às armas. Assim, estava pronto o enredo para o golpe que fundou o Estado Novo, a Terceira República.
O novo regime ancorado em repressão e propaganda, voltado para a construção de uma identidade nacional, conduziu o país com mãos de ferro e apoio popular durante os anos críticos da segunda grande guerra. Ele duraria até o final de 1945, quando, na sequência dos ventos de liberalização ao fim do conflito mundial, foi deposto o Ditador, realizadas eleições e teve início a Quarta República. Nela teríamos de fato nossa primeira democracia de massas, com participação extensa de um amplo leque social. Um período naturalmente efervescente, conturbado, pontilhado por crises no qual dois dos quatro presidentes eleitos não concluíram seus mandatos e que seria encerrado com o golpe de 1964 que iniciou o regime militar, a Quinta República.
Durante a mesma, afora a resistência, primeiro armada e depois política da oposição, sob o manto da aparência de calmaria imposto pela censura, os conflitos internos também eram frequentes e o regime se exauriu quando o último general presidente perdeu as rédeas da economia e da política. A redemocratização do país em 1985 assinalou o início da Nova República, a Sexta República brasileira que com a constituição de 1988, se prolonga até e as instituições funcionando em sua inteireza, as crises têm se sucedido e quando foram potencializadas dois dos cinco presidentes eleitos tiveram seus mandatos interrompidos por processos de impeachment. Ou seja, seis etapas de avanços, conquistas, retrocessos e reconquistas.
A vida de José Sarney está entrelaçada a diversos momentos dessa história. Em seis décadas e meia foi deputado federal, governador, senador, presidente da República e presidente do Senado por quatro vezes. Sobrepujando em poder e influência qualquer outro personagem do seu tempo. O jovem político que chega ao governo e revoluciona o estado; o presidente do partido oficial que abandona a legenda e muda o rumo da sucessão; e o presidente imprevisto que redemocratiza o país. São os capítulos selecionados aqui para brevíssima recuperação, como momentos especiais dessa longa jornada.
Nas biografias as datas costumam ser marcos significativos. E logo despontam as coincidências. Sarney nasceu no ano (1930) em que a Primeira República veio a pique na revolução comandada pelo governador gaúcho que se tornaria o maior líder popular da época.
E ingressou na política no ano em que o mesmo se suicidou (1954), pondo fim a um mandato conquistado dessa vez nas urnas com votação consagradora. Em plena Quarta República, deixando o PSD pelo qual disputara a primeira eleição para se filiar à UDN, o jovem político se aproximaria do grupo denominado Banda de Música do partido e o representaria na Vice-Presidência nacional da legenda. Esse time reunia um punhado de políticos de nível intelectual elevado e grande capacidade de comunicação que se esforçava para trazer um componente social ao partido. E que na segunda metade dos anos 60 fazia acirrada oposição ao governo. Tarefa desafiadora, pois o Presidente adversário entusiasmava o país executando o seu Plano de Metas, sintetizado na construção de Brasília.
O início dos anos 60 encontra José Sarney chefiando no seu estado a campanha vitoriosa daquele que foi o primeiro grande líder popular apoiado pela UDN e em cujo governo seria vice-líder da sua bancada na Câmara. Contudo, aquele mandato e todas as esperanças nele depositadas
* Por Antonio Lavareda-Cientista político e sociólogo
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