No alto do sertão, se come arroz com pequi por causa da influência mineira. No vale do Rio de São Francisco, quem reina soberano não é Xangô, nem Oxalá, mas o Senhor Bom Jesus da Lapa.
Se alguém não conhecia essas informações, fica o convite para ler o livro Bahia de Todos os Cantos - Uma Introdução à Cultura Baiana (Editora Solisluna), 400 páginas, do antropólogo e poeta Antonio Risério e do sociólogo e jornalista Gustavo Falcón.
A obra foi lançada neste último final de semana com uma live no YouTube da editora Solisluna, fez um passeio profundo pela diversidade cultural baiana com literatura e certa dose de humor. São cerca de 20 ensaios que revisitam clássicos da história e recuperam a literatura regional para falar sobre a realidade de diferentes cantos do estado: não só do popular Recôncavo, mas também do sertão, do Oeste, da Chapada Diamantina e do Sul da Bahia.
Espécie de guia sobre as singularidades baianas, o livro resulta de “uma noite etílica” entre os amigos autores. “Sempre tomamos o Brasil e a Bahia como campo de estudo e objeto de reflexão. E já publicamos diversos trabalhos nessa direção. (...) Então, escrever esse livro foi uma consequência lógica de tudo isso. Convidei Falcón a fazê-lo comigo numa conversa há uns 18 anos, numa noite etílica no pequeno sítio onde eu então morava. Ele topou – e a gente veio fazendo”, conta Antônio Risério, 67 anos.
Próximos desde a adolescência, Gustavo e Risério sempre se encontravam para discutir “ou bebericar”, lembra Falcón, 68, aos risos. Enquanto um se preocupava com os clássicos da literatura, o outro gostava mais dos romancistas baianos. “Nós fizemos essa conexão e daí veio a ideia de reunirmos literatura regional para fazer uma espécie de voo razante na paisagem cultural da Bahia e interpretá-la de forma mais morderna para o público baiano”, explica Falcón.
O projeto, porém, não caminhou de primeira por falta de apoio financeiro do governo e da iniciativa privada. Mas o encontro de amigos era movido por uma obsessão: tentar entender o Brasil. E a Bahia era o pontapé para isso. A partir daí, cada um seguiu com sua vida e, em paralelo, foi tocando o projeto bem devagar. “Ficamos assustados com os conterrâneos que não entendiam a própria realidade”, confessa Falcón, sobre um dos estímulos para sua pesquisa.
Na nota do autor, o sociólogo e jornalista relembra o dia em que Ruy Espinheira Filho o confidenciou, na redação do jornal onde trabalhava, sua impressão sobre o livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (1941- 2014). “Depois desse livro, nunca mais verei o Recôncavo como o mesmo olhar”, disse Ruy. “Essa é a impressão que tenho à respeito do livro que o leitor tem agora em mãos: depois dele, jamais verá a Bahia do mesmo jeito”, compara Falcón.
A partir de uma narrativa por vezes bem-humorada e até picante, Bahia de Todos os Cantos busca facilitar o acesso do público à produção científica literária. A ideia é “retirar a boçalidade do academicismo”, afirma Falcón, a visão de uma Bahia caricata e tentar “desalienar o público”. “A gente quer quebrar um pouco o gelo dessa leitura presente, uma leitura superficial e turística que empobrece muito a realidade, tornando-a simplória às vezes”, defende o autor.
Questionado sobre a importância de se debruçar sobre a cultura da Bahia com tal profundidade, em uma época em que reina uma comunicação mais superficial, Risério ressalta que superficialidade e profundidade sempre existiram e não vão deixar de existir. “As pessoas já souberam falar e escrever português muito melhor do que hoje, claro, quando a quase totalidade da nossa população universitária pode ser tranquilamente definida como semiletrada”, critica.
Em seguida, o autor destaca que o trabalho dos intelectuais “sérios” e “profundos” nos ajuda a “tentar entender o mundo à nossa volta”. O livro tenta contribuir com esse processo a partir de capítulos como “pluralidade e sincretismo”, “recôncavo afrobarroco”", “do açúcar ao cacau” e “a face hegemônica da Bahia”. Além dos textos, fotos históricas compõem a obra que tem capa de Enéas Guerra e projeto gráfico de Valéria Pergentino e Elaine Quirelli.
“O que nós fizemos no livro foi assentar as bases históricas, antropológicas e sociológicas para um futuro mapeamento. Mas tendo consciência de que a realidade cultural não tem fronteiras definidas, como a realidade político-administrativa”, explica Risério. Assim, a partir de uma perspectiva socioantropológica, o livro apresenta “uma reflexão sobre as diversas regiões culturais da Bahia, examinando sua formação, seu desenvolvimento e suas especificidades”, resume.
Falcón destaca que não há a pretensão de esgotar o assunto com este livro. “Quando a gente começou a estudar, a gente viu o quanto o Brasil era complexo, com várias experiências regionalizadas que não são fáceis de entender. A Bahia é um país, é uma realidade rica. Precisa se tornar o centro de pesquisa. Foi um pouco de ousadia nessa direção, de valorizar nossa cultura e apresentar razões consistentes para as pessoas estudarem essa realidade. Aqui o Brasil nasceu, se constitiu”, conclui.
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