Ser eleita é apenas o começo da trajetória – e dos desafios – para que as mulheres influenciem os espaços de decisão no Congresso Nacional.
Ainda que tenham conseguido mais cadeiras na Câmara dos Deputados e no Senado Federal nas eleições de 2018, elas ainda estão longe dos cargos de poder nas duas casas legislativas: são minoria entre as lideranças partidárias, presidem somente 7 das 36 comissões permanentes do Congresso e nunca ocuparam o posto mais alto – a presidência da Câmara ou do Senado.
Quem está na presidência das duas casas tem o poder de escolher quais e quando projetos de lei serão votados, além de entrar na linha sucessória da Presidência da República. O Congresso Nacional, no entanto, nunca teve uma presidente da Câmara ou do Senado desde sua primeira assembleia, em 1826. Uma das que chegaram mais perto foi a ex-deputada e hoje senadora Rose de Freitas (PODEMOS-ES).
Em 2011, ela lançou a sua candidatura para a vice-presidência da Câmara dos Deputados e chegou ao cargo. Foi a primeira vez que uma mulher participou da mesa-diretora da casa. Nos dois anos seguintes ela se candidatou à presidência, mas conta que foi questionada pelo próprio partido. “Por que uma mulher? Não pode ser uma mulher, porque ela vai conviver com presidente da República, ministros”, conta Rose do que ouviu na época.
E ela tinha uma resposta para esses questionamentos. “Ora, como parlamentar também faço isso. É o recado cultural que nós temos que combater dia a dia”, conta.
Para a senadora, ainda existe uma cultura entre os líderes de partido que setoriza onde as mulheres podem ou não estar nos cargos da Câmara.”Eu diria que certos cargos podem, outros não podem. Certas relatorias podem, outras não podem, e o mesmo com as comissões. Têm uma cultura secular de que o homem é mais inteligente, é mais preparado.”
A distribuição das parlamentares nas comissões permanentes da Câmara é um retrato de onde as mulheres podem ou não estar na sociedade. Entre 25 comissões fixas da casa, apenas quatro são presididas por mulheres: a de Cultura, de Direitos da Pessoa Idosa, de Direitos da Mulher e a comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público. A primeira vez que uma deputada presidiu uma comissão permanente da Câmara foi em 1999, segundo dados do Movimento Transparência Partidária.
Líder do PSOL na Câmara dos deputados até julho, a deputada Fernanda Melchionna (RS) acredita que os partidos reproduzem a divisão sexual do trabalho. “Não é normal a falta de representação social das mulheres no parlamento. Não é normal ter mulheres só em algumas comissões de saúde, de seguridade social. Nós podemos debater tudo isso, mas também podemos falar sobre economia, constituição e justiça. Isso mostra como a questão do machismo está presente na Câmara dos Deputados e nos partidos”.
Em 2019 as mulheres só eram maioria em uma das comissões parlamentares: na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher – em 2020 as comissões não foram formadas por conta da pandemia de coronavírus. Nas outras elas representam no máximo 40% do número total de parlamentares, segundo levantamento do Elas no Congresso, plataforma de monitoramento legislativo d’AzMina, com os dados das comissões permanentes da Câmara.
Há comissões que sequer contavam com parlamentares mulheres em sua formação, como é o caso da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços. Quando falamos de mulheres negras, elas estão em apenas nove das 25 comissões permanentes.
Para entender a importância disso, vamos usar como exemplo uma disputa em uma comissão especial do Congresso, em 2017, que mostra o quanto a falta de mulheres em cargos legislativos influencia como as leis serão discutidas.
Aumentar a licença-maternidade para mães de bebês prematuros parece uma boa ideia para ampliar os direitos das mulheres. Era sobre isso que falava o texto da PEC 181, proposta de emenda constitucional que ganhou uma comissão especial na Câmara dos Deputados naquele ano. O presidente da comissão era um homem: o deputado Evandro Gussi (PV-SP). E entre os três vice-presidentes, apenas uma mulher, a então deputada Geovania de Sá Rodrigues (PSDB-SC).
O que seria mais um passo para os direitos das mulheres, no entanto, ganhou o apelido de cavalo de tróia, quando o relator da comissão, responsável pelo texto final da PEC, acrescentou no documento que a vida começa desde a sua concepção – a maior parte da oposição ao aborto baseia-se na premissa de que o feto é um ser humano, uma pessoa, desde o momento da concepção. O texto da PEC, com o substitutivo, foi aprovado pela Comissão Especial da Câmara com 18 votos contra um na primeira sessão – a única mulher a votar foi a única que votou contra a proposta. A segunda sessão acabou suspensa após manifestação do movimento feminista.
No Senado Federal, a realidade feminina nas comissões não é muito diferente. As mulheres presidem três das 11 comissões permanentes da casa: a de Agricultura e Reforma Agrária, a de Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, e a de Comunicação e Informática. E pela primeira vez desde a redemocratização, uma mulher assumiu uma das comissões com mais poder do Senado, a de de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). A senadora Simone Tebet (MDB-MS), atual presidente dessa comissão, travou uma disputa dentro do seu partido para concorrer ao cargo.
Isso é um retrato de outro espaço em que as mulheres estão em desigualdade: as lideranças dos partidos. São os líderes que indicam as lideranças e os membros de cada comissão, de acordo com a proporção do seu partido no total de parlamentares. Quem tem mais pessoas eleitas, ocupa mais cadeiras nas comissões e nas lideranças. É a regra de proporção partidária que está no regimento da Câmara e do Senado.
Os critérios que as siglas usam para indicar parlamentares para comissões, relatoria de projetos e mesas diretoras, no entanto, não tem base em qualquer regimento da Câmara ou dos estatutos dos partidos. Nesses casos, prevalecem as regras informais. “Regras informais geralmente prejudicam as mulheres. Se elas têm dificuldade de entrar nesses espaços, elas têm menos tempo para conhecer essas regras. São questões que dificultam”, explica a cientista política Daniela Leandro Rezende, da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Estudos sobre as lideranças da Câmara indicam que critérios informais comuns para colocar parlamentares em cargos é o acúmulo de experiência na área em que eles estarão.
Se deputados e senadores têm curso superior na área de educação, economia, provavelmente serão indicados para comissões relacionadas a esses temas. O mesmo vale para experiências profissionais. “Mas isso varia ao longo do tempo e de comissão para comissão”, observa a professora.
A trajetória política das mulheres, cercada por percalços políticos maiores do que os homens, é outro aspecto que influencia o cargo que elas podem ter no legislativo, segundo Daniela. “As mulheres estão ausentes nas comissões executivas dos partidos. Têm mais dificuldade para se eleger, então o acúmulo de experiência dessas mulheres é mais difícil. Quando chegam nessa alocação, elas já são minoria e geralmente vão para essas comissões de cultura, família, e menos para as comissões como a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ)”.
As lideranças de partido também participam do Conselho de Líderes, que ao lado do presidente de cada casa, decide quais são as votações do dia, com os líderes de maioria e de minoria.
Mas de 24 lideranças de partido na Câmara dos Deputados, apenas três hoje são mulheres: Sâmia Bomfim (PSOL), Perpétua Almeida (PCdoB) e Joenia Wapichana (Rede). Além disso, a deputada professora Dorinha (DEM-DF), que é líder da bancada feminina, também tem uma cadeira no colégio de líderes. Uma mulher só foi ocupar esse cargo na Câmara em 1996, segundo dados do Movimento Transparência Partidária. No Senado, há apenas uma mulher líder: Eliziane Gama (Cidadania)
A última eleição representou um avanço para as mulheres no Congresso Nacional. Foi só em 2018 que as parlamentares saíram de 10% da casa para 15%, mas ainda estamos longe do que seria suficiente, segundo a cientista política Daniela Resende.
“Isso significa que as mulheres estão fora de diversas comissões, isso significa que mesmo que elas se articulem e formem um consenso são apenas 15% dos deputados. Isso dificulta que elas se retirem de uma votação, todas as mulheres, tentando impedir a continuidade da pauta”.
A professora alerta que mais um desafio chegou com o aumento de mulheres no Congresso. São as parlamentares conservadoras que, muitas vezes, combatem os direitos das mulheres no legislativo. Um exemplo é a deputado Carolina de Toni (PSL-SC), que apresentou um projeto para acabar com a cota feminina de 30% do fundo partidário. Um recurso que financia campanhas eleitorais de candidatos e colaborou com o aumento de mulheres na Câmara com a eleição de 2018.
Projetos como o da deputada do PSL demonstraram que a atuação coletiva entre mulheres parlamentares está mais complexa. “Hoje não há consenso entre as deputadas para questões que antes eram comuns entre elas, como a lei de cotas para mulheres. Você aumenta o número de mulheres, mas desmobiliza esse grupo enquanto uma categoria que tem uma identidade coletiva na Câmara dos Deputados”, explica a cientista política.
A ação coletiva entre as mulheres é um instrumento para influenciar o processo decisório. Desde a redemocratização, a bancada feminina tem esse papel, reunindo mulheres de diferentes partidos para discutir e criar um posicionamento entre as parlamentares sobre projetos que atingem as mulheres brasileiras. Para a criação da Lei Maria da Penha, por exemplo, foi essencial essa união.
Desde 2013, a banca feminina tem um cargo no conselho de líderes da câmara, com direito a voto e voz. Alguns assuntos como o aborto contrariam o consenso entre as deputadas, mas o embate aumentou na última legislatura.
A ex-líder do PSOL, Fernanda Melchionna, acredita que as deputadas contra os direitos das mulheres são minoria na bancada feminina e que a ação coletiva histórica das mulheres no Congresso pode superar as poucas que tentar diminuir o poder da bancada. “Nós precisamos organizar essa força social do movimento de mulheres na sua diversidade para potencializar a luta das mulheres, não só contra retrocessos, mas pelos avanços”.
ESPAÇOS DE PODER: A deputada e vice-candidata à prefeitura de São Paulo, Luiza Erundina (Psol-SP), apresentou uma proposta de emenda constitucional (PEC 190/2006) para que pelo menos uma mulher esteja nas mesas-diretoras da Câmara e do Senado e nas mesas das comissões das casas. O projeto foi a votação pela primeira vez em 2015 e está na fila do Senado desde 2019.
A cientista política Daniela Rezende considera que projetos como o de Erundina ampliam o espaço de poder, para que as mulheres estejam presentes nas decisões da Câmara. “Se você tem pessoas com pouco poder numérico, mas que concentram cargos (a presidência da mesa, comissões importantes), os 15% das mulheres no Congresso se multiplica. No caso brasileiro, as mulheres estão excluídas. Isso significa que em decisões importante nós não podemos deliberar”.
A senadora Rose de Freitas vê a mudança nas pessoas atentas à falta de mulheres no parlamento. Inclusive homens que reconheçam a importância das mulheres e outros grupos na política para melhorar a qualidade da democracia.
“Para mudar, nós precisamos trazer outros elementos, que pensem como nós lado a lado, tomando uma posição a favor da mulher. Nós não temos número para decidir uma eleição na casa, no estado, a não ser como eleitora. Isso só muda se mudar a representatividade, com consciência da importância da mulher na política”.
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