O menino, que nasceu Ozael, não se sabe por quê, logo ganhou o apelido de Pixita. Foi criado solto na Rua dos Remédios – que era, na Ouricuri da sua época, um paraíso pra vadiagem. Os arredores se ofereciam pros meninos se espalharem em todo tipo de estripulia. De baladeira em punho reviravam os caminhos da Lagoa de Dentro; Açude Novo; do Bom Jesus; Açude Da Nação; dos “calderões” da Solta...
Seu Joaquim Mariano, o pai de Pixita, já era coveiro da cidade há tanto tempo que já tinha perdido a conta. Ganhava a vida no momento em que outros a perdiam. Não mais se assombrava com nada, a não ser com a sobrevivência e com os fantasmas que rondavam o destino dos seus filhos.
Pixita cresceu saltando covas e rodeando o mistério sombrio das catacumbas; em meio às algazarras infantis e ao clima soturno dos enterros; entre uma meninice livre e a sombra dos muros do cemitério; com as cores alegres das peraltices e a tristeza desbotada nas mortalhas.
Ainda muito pequeno começou a mostrar sinais de ser engenhoso; de ser dado a tramar com a imaginação; de ser maneiro nos movimentos e criativo na quietude. Tinha o seu jeito; bem dele, de brincar só, ou com outros, nos muros das casas e nas ruas de chão batido e arredores, com os boizinhos de chifre, carrinhos de lata, patinete... ou de bola, de garrafão, de aribusca, de bandeirinha, de peteca, de soltar papagaio...
Atravessava meia cidade e as barreiras que se impunham a um menino negro e de família humilde; pra ir aprender as primeiras letras e adentrar um outro território, no Grupo Escolar Telésforo Siqueira, no centro desta, onde logo se mostrou muito atento e esperto na aprendizagem.
Ainda no “Grupo”, travou uma sensível amizade – que perduraria por toda a vida – com Marcílio de Seu Hercílio, que era do mesmo naipe seu: precoce na curiosidade pro universo do cinema, das revistas em quadrinhos – colecionando, trocando e emprestando uns aos outros...
Já adolescente, seguindo o canto da sereia da propaganda de carreiras, que vinha impressa em revistas, Pixita desenvolveu uma verdadeira obsessão por ingressar na Academia das Agulhas Negras – a elite do Exército brasileiro. Foi aí que o mundo começou a rugir à sua volta: “Filho de coveiro não pode sonhar em tirar os pés do chão! ”.
Mas Pixita não ouviu e continuou; como quando era menino, a acreditar que os sonhos estavam aí pra todos; que era só se aboletar neles e brincar de imaginar, que todo voo era possível. E assim desejou; fez finca-pé e tentou se lançar na direção de outros horizontes.
Nunca alcançou o seu intento, pois dificilmente conseguiria superar as adversidades do cruel sistema de seleção: Concorrer em absurda desigualdade de condições de formação escolar e de acesso a material didático, com candidatos do país inteiro; agravada pela garantia de vagas a privilegiados, por critérios político-sociais e da prática de facilitar a hereditariedade na carreira militar.
Ficou Pixita, que já tinha perdido a infância, agora, órfão também dos sonhos, que era o que o diferenciava e movia. Depois de ter as asas ceifadas pela foice cruel da realidade estabelecida, restava-lhe duas opções:
Ficar – como o seu pai – abrindo covas sob os próprios pés e enterrar de vez qualquer aspiração de voo; ou aventurar-se nas armadilhas sorrateiras que o “Sul Maravilha” oferecia aos brasileiros deserdados do seu direito de sonhar e viver com dignidade: Sobreviver numa periferia da vida; estancado na congestionada boca do funil do sistema.
Pixita debandou-se pra São Paulo, trabalhou “feito um condenado”, na construção civil, quando aprendeu ofícios que lhe garantiriam uma sobrevivência semiescrava pelo resto da vida.
De volta à terra natal, já casado, trazia na bagagem mais dissabores e frustrações do que as que tinha levado.
Em Ouricuri enfrentou trabalhos que não preenchiam as lacunas que se acumulavam no seu interior; tendo sido, nesse período, aprovado em vários concursos públicos; sem, no entanto, ser chamado pra assumir nenhum deles. Mantinha o hábito da leitura espontânea e o gosto por poemas de formas fixas. Passou a entregar-se a uma vida largada, bebendo e remoendo os seus traumas.
Os seres sensíveis que, como Pixita nasceram pra grandes voos, vivem como o equilibrista no arame: Qualquer vento ou desvio de olhar podem lhes tirar o prumo e os fazer cair num precipício sem volta.
Têm as vidas tremulando sobre uma linha tênue entre a plenitude da auto-realização e a desventura de ser enterrado vivo – no cemitério da dita civilização.
Pixita nunca mais voltou!
Quem sabe, foi levantar voo em outros planos...
*Maurício Cordeiro Ferreira – Poeta e fundador do Sebo Rebuliço.
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