Virar carranca para defender o Velho Chico passa pela defesa do Urucuia, maior responsável pelo suprimento de águas do São Francisco, principalmente em períodos de estiagem, e fundamental para a segurança e o balanço hídrico em toda bacia.
Em outras palavras, o aquífero é vital para o rio. A importância é tanta, que de agosto a outubro essa contribuição pode ser de 80 a 90%. Enquanto sua necessidade é inquestionável para a sustentabilidade do Velho Chico, é verdade também que são muitos os desafios para gerir toda essa água que se esconde de nossas vistas, mas vem sofrendo uma redução perceptível, que preocupa.
“Apesar de termos carência de dados, o que dificulta a aplicação dos instrumentos de gestão, sabemos que há uma grande exploração das águas subterrâneas na bacia do Urucuia e pouco controle”, afirma José Almir Cirilo, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador da recém-criada Câmara Técnica de Águas Subterrâneas do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco.
Estudos do Departamento de Geologia Aplicada da Universidade Estadual Paulista (UNESP) apontam uma queda intensa nas vazões dos afluentes do Rio São Francisco que escoam o aquífero Urucuia. Paralelamente, identificam uma queda significativa no total de água armazenada na bacia onde está o Urucuia (incluindo águas subterrâneas e superficiais) no período de 12 anos, de 2003 a 2014.
A taxa de queda encontrada é de 6,5 mm/ano, totalizando um volume de 9,75 km³ de água. O volume é aproximadamente um terço da capacidade de armazenamento do reservatório de Sobradinho, que é o maior do Nordeste.
Outra constatação categórica é que desde 1980 todos os principais afluentes monitorados apresentaram uma queda alarmante proveniente do Urucuia: 49%, de 1980 a 2015.
De acordo com o geólogo e autor desses estudos, Roger Gonçalves, o comportamento desses ciclos está sofrendo influência direta de efeitos antrópicos, como explotação de águas subterrâneas, captação de águas superficiais, represamento, irrigação e compactação do solo nas áreas de recarga.
Também autor das pesquisas, o professor titular da UNESP e coordenador do Laboratório de Estudos de Bacias, Chang Hung Kiang, integrante da Câmara Técnica de Águas Subterrâneas do CBHSF, enfatiza: “a queda se deve à extração. No passado, concluiu-se que, provavelmente, era em função da redução da chuva. Atualmente, a gente tem visto que essa queda não é tão significativa. Se o volume da chuva não caiu tanto, mas o armazenamento cai, é porque há super explotação da água subterrânea”.
Um dos estudos mais recentes da UNESP indica que o principal fator responsável pela perda acentuada de água da bacia é o aumento da evapotranspiração. Dentre os fatores que contribuem para esse incremento está a evaporação por meio de reservatórios de captação e a transpiração das culturas cultivadas no chapadão por meio de irrigação.
Como aponta o artigo, é preciso quantificar bem os usos tanto de água superficial quanto subterrânea, para que seja possível promover uma utilização sustentável que não sobrecarregue os rios e o aquífero Urucuia, tão crucial para o suprimento de água no Velho Chico.
O controle do uso é uma das propostas do CBHSF, conforme explica Cirilo: “cabe ao Comitê, como entidade deliberativa que agrega os diferentes segmentos populacionais, políticos e sociais da bacia, o papel de provocar, incentivar, promover estudos para que essa gestão melhore. É por isso que o diagnóstico é um dos primeiros passos da CT de Águas Subterrâneas criada no final de 2019 com a proposta de formular um conjunto de ações que possam se transformar em medidas efetivas para o uso mais racional das águas subterrâneas na bacia do São Francisco”.
A dificuldade em gerir águas subterrâneas salta aos olhos. Falta legislação específica e principalmente controle do uso na maior parte dos estados. É preciso ainda ter sistemas de outorga confiáveis, implantar a cobrança e resolver questões relacionadas à dominialidade. Cirilo comenta que o monitoramento é precário e que é necessário desenvolver estudos mais precisos para avaliar as recargas e impor limites à retirada da água. Para ele, a cobrança precisa ser aplicada, evitando o desperdício.
Chang destaca que a falta de conhecimento sobre o uso da água subterrânea é geral. Sabe-se, por exemplo, que o número de poços cadastrados no contexto do Urucuia é inferior ao que existe na prática. “Satélites podem dar alguma informação, mas não tem como saber quanto cada poço está extraindo. É preciso coletar no campo. Tem que ter um órgão responsável, fiscalizador, gestor, que organize esse fluxo de informações. Todos precisam se conscientizar da importância e da necessidade de se voltar para essa questão. Cada um vai defender suas atividades, mas é preciso ter essa intermediação, juntar todos os setores.”
O Sistema Aquífero Urucuia (SAU) é um manancial que contribui para o fluxo de base dos afluentes da margem esquerda do rio São Francisco, principalmente nos períodos de estiagem. Localizado no oeste do estado da Bahia, região marcada pela expansão agrícola, vai ao extremo norte de Minas Gerais, extremo sul do Piauí e do Maranhão, alcançando ainda o extremo leste de Goiás e de Tocantins.
No contexto do Velho Chico, o principal afluente é o rio Grande, influenciado diretamente pela água subterrânea. O aquífero, um dos mais importantes do Brasil, tem mais de 140 mil quilômetros de extensão e capacidade de até 600 metros cúbicos por hora de vazão.
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