Artigo - DEPOIS DO CORONAVÍRUS (do valor do recolhimento)

29 de May / 2020 às 23h00 | Espaço do Leitor

Por que existe o mal? Esta questão acompanha a humanidade desde que o mundo é mundo. A pergunta é assunto para os doutores da Teodiceia e da Teologia, para os quais o mal é parte do percurso humano rumo à perfeição – estando portanto inserido no plano da Salvação eterna.

O iluminista Voltaire encarou a questão de forma um tanto cômica e divertida. No romance filosófico “Cândido”, o personagem Pangloss – após uma série de fracassos e contratempos – dirige-se ao protagonista da trama (Cândido) nos seguintes termos: “Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois afinal, se não tivesse sido expulso de um lindo castelo com uma saraivada de pontapés no traseiro por amor a Cunegundes, se não tivesse sido perseguido pela Inquisição, se não tivesse perdido todos os carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo cidras cristalizadas e pistaches".

Ou seja, como diz o bordão do Candinho, protagonista de um folhetim ora reprisado pela tela da família Marinho, "tudo de ruim que acontece na vida da gente é pra meiorá".

Pois então ouso inserir nesse contexto o tema do coronavírus, ele que tanto nos assusta, nos inquieta e nos enche de dúvidas.

A exemplo do “Cândido” e do Candinho – que costumam encarar a adversidade com pitadas de otimismo – creio ser possível extrair dessa conjuntura uma porção de bons ensinamentos, dependendo tão somente da nossa força de vontade.

Em outros dois textos escritos anteriormente, falei de como a atual crise pode contribuir para maior valorização da vida, da liberdade, da ciência, da tecnologia, da solidariedade, do respeito ao outro, das relações pessoais, do meio ambiente.

Falei também de como a pandemia tem chamado atenção para o papel do Estado, enquanto responsável por prover o bem-estar social dos cidadãos e cidadãs. O que, sem soma de dúvida, vai de encontro às ideias privatistas e liberalizantes, ora propagadas à exaustão.

Dessa vez ocorre-me falar do quanto o isolamento social atualmente em curso pode ser útil e benéfico para nosso crescimento pessoal.

Isolamento que, aliás, não pode ser tomado ao pé da letra, como afastamento completo de tudo e de todos. E nesse sentido – temos de admitir – as redes sociais (que nem sempre são tão sociais assim) têm sido de extrema importância.

O gesto de ficar em casa é algo fundamentalmente solidário, uma atitude de zelo e respeito, que acaba nos aproximando do outro, mesmo estando este fisicamente distante. E isso por si só já afasta a ideia do distanciamento enquanto rompimento do convívio social ou coisa parecida.

Como eu ia dizendo, o Isolamento pode ser de fundamental importância para nosso crescimento pessoal.

Estejamos em trabalho remoto ou exercendo qualquer outra atividade, o recolhimento – longe do burburinho do dia a dia – pode nos proporcionar bons momentos de reflexão, e até mesmo – quem sabe – de reencontro com nós mesmos...

Podemos aproveitar a oportunidade para repaginar as ideias e pensar novos projetos, tendo em vista, inclusive, o chamado “novo normal” que acaba de ser inaugurado e que inevitavelmente se seguirá à pandemia.

Podemos ouvir de novo aquela música que há tempo não ouvíamos, rever aquele filme do qual não lembrávamos mais, ou ler aquele livro que havíamos esquecido num canto da estante.

Podemos curtir e amar mais a nossa família, dedicando-lhe maior apreço e estreitando laços de respeito, união e companheirismo.

Podemos, enfim, abraçar a solidariedade como causa definitiva, fazendo da vida uma canção de amor, de comunhão e de congraçamento.

José Gonçalves do Nascimento

Escritor

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