O Brasil é hoje o quarto país, no ranking mundial, com mais casos confirmados do novo coronavírus e o sexto, com vítimas fatais. Enquanto a população brasileira assiste, diariamente, o presidente da República minimizar os efeitos de uma doença que já matou mais de 312 mil pessoas em todo mundo e contrariar as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), também vê a Covid-19 se propagar com velocidade e já sente seus efeitos, como o colapso do sistema público de saúde em alguns estados.
No início deste mês, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou uma preocupante tendência à interiorização do coronavírus no país. Segundo nota técnica divulgada pela Fiocruz, no final de abril, 44% das cidades médias (entre 20 mil e 50 mil habitantes) já registravam casos da Covid-19. O estudo aponta ainda a tendência de crescimento de ciclos de transmissão em cidades pequenas, localizadas em grande parte no interior do Brasil, onde a infraestrutura de saúde é mais precária.
O avanço do coronavírus já é uma realidade também em territórios indígenas e comunidades tradicionais. De forma independente, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) têm feito e divulgado o levantamento de casos e óbitos da Covid-19 entre suas populações. De acordo com os últimos boletins publicados pelas organizações, 537 indígenas e 128 quilombolas foram contaminados e 102 e 21, respectivamente, perderam suas vidas.
Em todo o estado da Bahia, segundo os dados da Secretária de Saúde, o número de casos confirmados já ultrapassa os oito mil, distribuídos em 212 municípios, sendo a capital Salvador e a região Sul as mais afetadas pela doença. Como consequência, as comunidades rurais já viram suas rotinas mudarem em decorrência da ameaça desse novo vírus.
Em algumas localidades, a produção de alimentos tem diminuído e a renda também, já que a participação em feiras não vem sendo possível e/ou foi reduzida. O dia a dia das comunidades também foi alterado. Sem encontros em grupos e realização de comemorações, mas diante da realidade da falta de assistência médica/hospitalar adequada para combater o coronavírus, trabalhadores/as rurais têm criado estratégias de proteção autônomas, como o controle de quem entra e sai das comunidades. Há ainda aquelas que, mesmo atravessando a pandemia, ainda tem que lidar com as ameaças e conflitos territoriais.
Acesso a médico pode chegar a até 70 km de distância
Localizada na região Centro-Norte da Bahia, a pequena Ibiquera tem cerca de cinco mil habitantes, sendo que metade vive na zona rural. No Assentamento Munduri do Movimento de Trabalhadores Rurais Assentados e Acampados da Bahia (CETA), as 98 famílias que sobrevivem basicamente da agricultura, principalmente com plantio de mandioca e produção de hortaliças, estão preocupadas com o avanço do coronavírus. O hospital mais próximo fica a 12 km, na sede do município, mas não dispõe de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O leito de UTI mais próximo fica a 80 km, na cidade de Ruy Barbosa.
Na comunidade tradicional de fecho de pasto João Barroca, no sudoeste do estado, em Caetité, a preocupação com a infraestrutura do sistema público de saúde também tem tirado o sossego dos moradores/as. “Que Deus possa nos livrar de chegar a nosso município algum caso, que ainda não tem. Por que aí agora fica difícil né? Nós não tem recursos suficiente para poder atender essas pessoas, né? A nossa saúde ainda não tem a capacidade de atender todo mundo”, comenta a tesoureira e vice-secretária da associação de moradores Rita Gomes.
De acordo com relatos da comunidade, as ações do poder público para o enfrentamento do coronavírus têm chegado, principalmente, através de meios de informações, como o rádio. O posto de saúde mais próximo de João Barroca fica a 12 km, mas segundo Rita, “não é toda hora que nós vamos chegar lá no posto em Brejinho e achar médico, o certo é ir na cidade [distância de 40 km]”.
Para a comunidade quilombola Pedrinhas, localizada em Muquém do São Francisco, na região Oeste, a situação é ainda mais complicada. De acordo com relatos da comunidade, a Secretaria de Saúde do município enviou funcionários até o local para passar orientações sobre o combate e prevenção ao coronavírus, mas o posto de saúde mais próximo fica a 70 km e o hospital, 74 km. “Sabemos da gravidade desse vírus, se chegar aqui na comunidade será terrível, nem a comunidade, nem o município tem estrutura para atender esses casos”, diz a vice-presidenta da associação da comunidade Jucineia dos Anjos.
Controle na entrada das comunidades e ações conjuntas para cumprimento do isolamento social
Diante da complexa e difícil realidade do acesso das comunidades rurais à infraestrutura de saúde adequada para o enfrentamento à Covid-19 e conscientes da importância do isolamento social, recomendado pelas autoridades de Saúde, os/as trabalhadores/as rurais têm adotado medidas para evitar a contaminação do coronavírus.
No Assentamento Santa Irene, localizado no município de Gongogi, onde vivem 100 famílias, a maior preocupação hoje é evitar o primeiro caso da doença no local. O município de pouco mais de sete mil habitantes, que faz parte da segunda região mais afetada do estado, tem sete casos confirmados da doença, segundo dados da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia.
Quando começaram a surgir os primeiros casos na região, uma das primeiras medidas da comunidade foi impedir o acesso de pessoas de fora do assentamento ao local. “Temos feito barreira na entrada no assentamento, uso de máscaras, distanciamento social e ações conjuntas com as entidades de saúde do município”, destaca o presidente da associação, Esinaldo de Jesus.
Na comunidade quilombola Pedrinhas, em Muquém do São Francisco, a população também fechou a entrada do local e pessoas de fora não são permitidas a entrar. Festas, jogos de futebol, cultos, missas e outras atividades que geram aglomeração de pessoas não são permitidas. Apesar de todos esses cuidados, há a preocupação com pessoas que invadiram parte do território quilombola. “As pessoas que entraram em parte de nosso território continuam lá, e nós continuamos sem poder utilizar essas áreas. A situação pode agravar, pois não sabemos se elas estão tomando os mesmos cuidados que o quilombo Pedrinhas está”, ressalta o integrante da associação comunitária Luan Campos.
As tradições da cultura popular também foram suspensas durante esse período de pandemia. Na comunidade Buriti, localizada no município de Correntina e que tem cerca de 200 anos de existência, festividades já foram canceladas. “A Festa do Divino do Rosário não vai ter esse ano, provavelmente a festa do São João também não e assim a Festa de Agosto. Isso são coisas que tão mexendo muito com o povo”, comenta o secretário da Associação de Fundo e Fecho de Pasto de Gado Bravo, Jamilton de Magalhães.
Assim como em Pedrinhas, a comunidade Buriti, que já enfrentou tentativas de grilagem de terra, tem a preocupação com as ameaças externas. “A gente tem medo de que venha esse povo para cá com as suas bramuras, temos a preocupação que aproveitem desse momento de isolamento social e façam coisas erradas lá na área [de fecho de pasto]”, afirma Jamilton.
Produção familiar garante abastecimento, mas renda diminui com pouca comercialização
A comunidade Buriti tem sentido os impactos da pandemia não só no convívio social, mas também economicamente. Apesar de produzir praticamente tudo, como comenta Jamilton, e conseguir manter o abastecimento da comunidade, a população já viu sua renda começar a cair, pois não está comercializando seus produtos, por causa de feiras que não estão acontecendo e/ou foram reduzidas e a dificuldade com transporte para produção.
“De certa forma, quem vive na comunidade tradicional de fundo e fecho de pasto é bem mais tranquilo, melhor do que quem tá na cidade, aqui sempre tem algo pra comer. O que preocupa é que a gente faz feira, vende, a gente compra e estamos parados, não estamos fazendo doces, não está tendo dinheiro na comunidade pelo trabalho e pelo comércio”, explica Jamilton.
Situação semelhante vive a comunidade Barroca do Faleiro, em Senhor do Bonfim, município que registrou o primeiro caso confirmado de coronavírus semana passada. Os/as agricultores/as ficaram sem participar das feiras livre e orgânica durante um mês. Atualmente, estão participando da feira livre quinzenalmente, antes da pandemia a frequência era semanal. Segundo a secretária da associação local, Rafaela Matos, a comunidade tem passado por um impacto forte “porque é algo que gostamos muito, além de ver o desempenho do seu trabalho desenvolvido, tem a renda, porque a agricultura é a base do abastecimento das casas e do pão de cada dia”.
No entanto, em comunidades como Pedrinhas, em que a produção de alimentos não é tão grande, o cenário é diferente. De acordo com Jucineia dos Anjos, o abastecimento não continua o mesmo com a pandemia. “A produção da comunidade não é suficiente, nem todos os quilombolas produzem alimentos, e quem planta nem sempre consegue colher, boa parte dos alimentos são comprados na cidade”, comenta. Ainda segundo Jucineia, os moradores da comunidade tiveram acesso ao auxílio emergencial do Governo Federal e os estudantes da rede pública do Estado receberam o vale-alimentação.
Além dos problemas e desafios sociais e sanitários enfrentados pelas comunidades rurais devido à pandemia do novo coronavírus, os/as trabalhadores/as rurais se sentem ofendidos/as e assustados/as com as atitudes irresponsáveis do presidente Jair Bolsonaro. Para a agricultora Élia Sodré, da comunidade Pedra Branca em Correntina, o maior vírus que as comunidades enfrentam hoje é o presidente da República. “A população aqui sente ele como uma ameaça, mais ameaçador que o próprio coronavírus”, afirma.
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