Moraes Moreira é daqueles artistas que chegavam naturalmente aos ouvidos da gente sem precisar ir atrás de sua obra. Na infância, um vizinho do lado direito escutava Novos Baianos. Já na adolescência, outro vizinho da esquerda botava os discos do primeiro cantor de trio elétrico que eram lançados a cada temporada. No anos 80, ouvia-se Moraes nas festas de fim de ano, nas barracas das quermesses, até na discoteca e, claro, em todos os carnavais. Nos tais "assustados"(festas em casas de amigos), rolava os ritmos do cantor. Moraes Moreira foi de fato um cantor meramente e completamente Brasileiro com B maiúsculo.
Quando saiu de sua pequena Ituaçu(BA), para cidade grande leva na cabeça a paixão pela música. os clássicos de Luiz Gonzaga e do também do baiano João Gilberto, povoavam em sua memória afetiva. Só não imaginava que mais adiante junto com suas turma dos Novos Baianos - Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Baby do Brasil e Galvão receberia o mesmo João no sítio em que moravam no Rio. Imagine a farra que foi encontrar o papa da Bossa Nova. E só pra quem lembrar João e Galvão são filhos de Juazeiro.
Moraes entra para história como o primeiro cantor do trio elétrico de Dodô e Osmar nos anos 1970. Antes, os trios percorriam as ruas e avenidas de Salvador fazendo apenas um som instrumental, mas arrastando multidões. O novo integrante, chegou para dialogar suas palavras com as guitarras eletrizadas.
O primeiro a fazer sua revoada do grupo Novos Baianos foi Moraes com a missão de asfaltar a carreira solo. E nunca abandonou suas raízes. Nunca cantou em outra língua. Nunca se vendeu a modismos. Samba, frevo, forró, xote, baião, baladas românticas, afoxé, entre tantos outros ritmos que povoaram seu cancioneiro autoral e em parcerias eventuais.
Como o brasileiro não tem memória larga, ainda bem que a história da MPB resiste para contar que o compositor foi quem alimentou sucessos radiofônicos para várias intérpretes como Gal Costa com "Festa do Interior" e "Bloco do Prazer". Simone emplacou "Pão e Poesia". Para a colega Baby do Brasil, compôs ao lado de Galvão clássicos como "A Menina dança" e "Trinindo e Tricando".
Poeta e cordelista, atividades que vinha exercendo paralelo à música, Moraes deixa uma discografia suntuosa com dezenas de trabalhos que podem ser considerados "obras musicais necessárias para história da cultura brasileira". Sua discografia é bem eclética com parcerias brilhantes: Cara e Coração, Alto Falante, Lá vem o Brasil descendo a ladeira, Bazar Brasileiro, Coisa Acesa, Pintando o Oito, Mancha de Dendê Não Sai, Tocando a Vida, Mestiço é Isso, República da Música, Baiano Fala Cantando... a lista é grande e a cada trabalho uma brasilidade revigorada.
O primeiro disco solo que chegou aos meus ouvidos foi o Alto falante que abre com "Pedaço de Canção", a que mais gosto: "Que uma canção pelo céu levaria/No véu da cidade na melhor sintonia/Todo o meu coração. Mas as frases que eu grito em bocas tão desiguais/são pedaços daquilo que sinto e não canto jamais". Com o passar do tempo, vi vários shows de MM do litoral ao sertão. Mas a passagem inesquecível foi no dia 1º de dezembro do ano de 1996, no Recife. Ia ter mais uma edição ao ar livre do show coletivo pelo Dia Mundial de Combate a Aids. Uma penca de feras da MPB. Tinha combinado por telefone com o amigo conterrâneo Toinho Batera. Acertamos a hora de o encontrar no hotel. Cheguei um pouco atrasado por conta do trânsito. Toinho já tinha ido 5 minutos antes. Numa fração de segundos me aparece outro baterista o Elber Bedaque. Contei da minha viagem perdida e Elber, prestimoso, me convidou para ir com ele. Como? No ônibus do patrão Moraes Moreira e toda turma. Moraes, gigante, me cumprimentou e perguntou se eu era parente do Bedaque ou do percussionista Repolho, todos de baixa estatura e sorriu.
A viagem de Boa Viagem até o Recife antigo foi uma festa dentro do ônibus. O que aconteceu na rota até o local do evento e nos bastidores do show, só na memória, nem vou contar. E como cantou Moraes "Transando o corpo e a cuca numa nice".
Foi nesse show que vi pela primeira e única vez o mangue beat Chico Science circulando nos bastidores e trocando palavras com Moraes. No ano seguinte, Chico partiu antes do carnaval começar. Agora foi Moraes que não fará mais em sua presença física a alegria dos próximos carnavais. Então escutemos suas canções mesmo que não as toquem no rádio. A gente toca em todos os lugares. Viva o baiano brasileiríssimo Moraes Moreira. Acabou Chorare, porque as canções ainda serão cantadas.
*Emanuel Andrade é jornalista, professor da Universidade da Bahia (Uneb) e pesquisador sobre Música Popular Brasileira. Autor da biografia de Ana das Carrancas - A Dama do Barro.
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