É uma trágica ironia, mas os pouco mais de 40 mil moradores de Canela, na serra gaúcha, sabem mais sobre como os londrinos, vienenses, nova-iorquinos e japoneses estão lidando com a pandemia de coronavírus do que o que acontece na cidade onde moram.
A televisão e a internet tornam familiares personagens e eventos do outro lado do mundo, mas a falta de um jornalismo local cria o que muitos chamam de “desertos informativos”.
A pandemia do coronavírus está mostrando que não basta haver jornais ou emissoras de rádio locais quando essas empresas estão mais preocupadas com a sobrevivência financeira do que com os dilemas da população. Esse desencontro de necessidades abriu espaços para vários projetos noticiosos baseados na internet preocupados em aproveitar essa janela de oportunidades informativas. Mas a frustração tem sido uma regra. A grande maioria das iniciativas patina na hora de buscar informações e acaba publicando apenas a opinião do autor do projeto, seus parentes e amigos. A egolatria acaba predominando.
A informação local, nestes tempos de coronavírus, está diante de dois obstáculos que tiram o sono de quase todos os que atuam na área: a dificuldade de envolver a população na busca e publicação de informações sobre como a pandemia está afetando o seu dia a dia e a necessidade de dinheiro para pagar o impulsionamento de notícias postadas no Facebook, a plataforma escolhida por dez em cada dez projetos comunitários.
O primeiro obstáculo é uma herança da velha máxima de que o jornalista sabe o que é bom para as pessoas e que acabou responsável pela criação de uma hoje insustentável atitude reverencial dos leitores diante da imprensa. O jornalismo local, nos tempos atuais, depende umbilicalmente da participação do público na produção e disseminação de notícias. Acontece que as pessoas deixam de colaborar porque acham que não estão capacitadas, pois estão condicionadas pela cultura imposta pela imprensa de que é ela que sabe o que as pessoas devem saber.
Isso obriga quem tenta fazer jornalismo local a ter que desmanchar uma percepção equivocada e que está solidamente implantada no comportamento das pessoas. Mudar comportamentos não é uma coisa que dá resultados da noite para o dia. Acontece que a pandemia exige fluxos noticiosos em tempo real para que, por exemplo, as pessoas fiquem em casa, apesar de uma cidade como Canela ainda não ter registrado nenhuma morte por coronavírus. Prevenir sem casos reais exige muita informação para que as pessoas reajam em função de algo que pode acontecer.
Minha experiência tem mostrado que não faltam fatos, dados e eventos locais capazes de atrair a atenção das pessoas e induzi-las a ações de prevenção, baseadas no exemplo de um vizinho, parente ou amigo. Mas as pessoas acham que, para tornar estes fatos, dados e eventos em algo noticiável, elas precisam usar o instrumental jornalístico, quando na realidade basta contar uma história, como se estivesse num bar com amigos ou na mesa de jantar com a família.
Contar histórias é o grande recurso para um projeto jornalístico local romper a barreira da subordinação do público a “quem sabe o que as pessoas precisam”. É também a estratégia mais eficiente para o compartilhamento de informações, especialmente em tempos de crise. Os grandes jornais mundiais, como The Guardian, Folha de S.Paulo, O Globo e The New York Times, já publicam regularmente narrativas envolventes produzidas por leitores, mas nas pequenas cidades o manancial de histórias locais ainda é um território inexplorado por conta de uma percepção absurda alimentada por nós próprios, os jornalistas.
O resultado é que os projetos locais acabam tendo que atuar em três frentes ao mesmo tempo: na reeducação dos leitores, mostrando que suas histórias devem ser contadas quando têm algum tipo de mensagem para o público em geral; na garimpagem direta de informações, usando a checagem de credibilidade, bem como a contextualização das notícias veiculadas pela grande imprensa; e também na quase sempre frustrante busca de dinheiro para impulsionar postagens, uma ferramenta indispensável para obter um mínimo de visibilidade numa rede social com mais de dois bilhões de usuários.
A grande imprensa regional, nacional ou mundial fornece os grandes insumos informativos que vão alimentar reflexões e decisões de âmbito global, mas é no espaço local que essas resoluções precisam gerar ações concretas das pessoas através de fluxos personalizados de dados, fatos e notícias. Numa pandemia globalizada, um divórcio entre fluxos informativos é uma receita segura para desfechos letais.
*Carlos Castilho é jornalista profissional há 45 anos, com pós-doutorado em mídias eletrônicas e participante do projeto jornalístico local Te Liga, Canela!
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