Durante 04 anos e meio em que estudei na Uneb, em Juazeiro, passava quase todas as tardes pelo Bairro Maria Gorete. Sempre elegia uma rua para fazer o trajeto para não ficar monótono e numa delas algo me chamava atenção. Ao mesmo tempo eu sentia o mau cheiro de cachorro molhado e o delicioso cheiro de bugarim.
Sempre dando aquela olhada de banda quando passava em frente à casa, eu buscava entender como alguém morava naquela residência que mais parecia abandonada. Passei a observar um carrinho tipo bomboniere na sala e vez ou oura via um senhor de idade, geralmente bem à vontade, só de calças e sem camisa. Andando pela Avenida Adolfo Viana no período da manhã, identifiquei aquele senhor com o carrinho bomboniere sempre marcando ponto nas proximidades da Fabrilanches.
Certo dia ao passar em frente a casa, o senhor estava lendo um jornal local. A curiosidade jornalística, cronista ou da pessoa mesmo me encorajou a atrasar minha chegada na Uneb para puxar assunto com aquele senhor que de fato parecia dividir a casa com os cachorros. Estava com minha câmera digital pra registrar tudo, caso ele permitisse. Ele me recebeu bem e ali começamos uma conversa, cuja gravação retomei agora para escrever esse texto.
E lá estávamos eu e Seu Evandro Gonçalves, que na época dizia ter 74 anos. Cometi o vacilo de não registrar a data da entrevista, mas um dos pontos foi uma análise política que me permite deduzir que era uma tarde de 2010. Seu Evandro me contou que era viúvo há 19 anos e morava com sete cachorros, uma forma de manter viva a lembrança da esposa que gostava muito desses animais. Na entrevista me disse que era natural de Antas (BA) e que já foi dono de budega na Rua Cesário da Silva até se casar com "uma moça das caatingas", onde ele foi morar um tempo mas depois retornou a Juazeiro para colocar os filhos para estudar. Seu Evandro diz ter se arrependido de ter retornado para cidade, pois apesar de muito trabalho, principalmente na época da seca, "lá a pessoa ganha dinheiro e não tem com que gastar".
Me contou que tornou-se dono de armazém na Avenida Flaviano Guimarães mas faliu no período de doença da esposa. Ele ressaltava seu passado como se quisesse me dizer que apesar de morar ali naquela casa quase abandonada com cheiro de cachorro e bugarim ele tem uma história. Me disse que estudou no antigo Edson Ribeiro que era o Ginásio de Juazeiro, que fez o curso científico (ensino médio) no Crato (CE), prestou dois vestibulares e serviu ao Exército. Fez também concursos para estatais e bancos mas nunca foi chamado.
Lembrei da cena da chegada e perguntei se era um hábito dele ler jornal, ele logo disse que sim, pois "gosto de saber das notícias, gosto de política". De imediato me disse que iria votar em Marina Silva, sabia que ela não iria ganhar a eleição presidencial, mas achou a conversa dela segura. Me contou admirado que ela aprendeu a ler com 16 anos e se formou em História. Esse trecho da conversa me faz deduzir que este primeiro contato com seu Evandro se deu em 2010, meu último ano na Uneb e período de pré-campanha presidencial. Após declarar seu voto para o pleito seguinte, ele avaliou o governo da época: "Não vou negar que Lula seja um bom presidente, que é. Isso aí ninguém pode negar. Não vou dizer que ele é ruim. Pra nós aqui foi o melhor presidente que já teve. Basta essas universidade federal que ele trouxe praqui. Já pensou? Antigamente o pobre tinha inteligência, o pai tinha vontade mas não podia botar numa capital , hoje se forma aqui... pra médico, pra engenheiro".
Falamos ainda sobre religião e ele afirmou: "eu sou católico, mas não sou contra religião de ninguém, cada um tem sua fé". Na sua rotina de aposentado, estava satisfeito com seu salário de R$ 510, "pra mim dá pra viver folgado", dizia ele naquela tarde. Fazia as refeições numa pensão e ia todas as manhãs vender na Avenida apenas para passar o tempo, fazer amigos, pois para ele "dinheiro é bom mas amizade é melhor".
Saí daquela conversa feliz e grata com a recepção de Seu Evandro, parece que aquela experiência me dizia que no jornalismo e na vida as portas sempre estariam abertas para mim. E sempre estão mesmo! Queria escrever sobre aquela experiência e publicar. Mas as correrias de uma estudante quase formada, militante do movimento estudantil e de ouras causas me fizeram arquivar o material. Porém, sempre que perambulava pelos arquivos do computador via a pasta "Seu Evandro" e sentia como se eu devesse algo a alguém. Devia mesmo, pois prometi a ele escrever. Este ano, 09 anos depois, parei um dia em um semáforo na Avenida Adolfo Viana e ao olhar pro lado lá estava Seu Evandro com sua bomboniere. Não dava pra parar naquele momento, passei mais umas duas vezes até que um dia andava com uma câmera no carro e resolvi parar. Ele mudou o ponto de venda, aumentou a idade, emagreceu, mas quando me apresentei ele disse: "tô me lembrando da senhora". Há 09 anos ele também já me chamava de senhora durante a gravação.
Pedi novamente permissão a Seu Evandro pra atualizar algumas informações, me comprometendo que dessa vez iria publicar e levaria pra ele ler. Ao lado do carrinho, havia cachorros, seus companheiros de sempre. Tornamos a falar sobre seu apego àqueles animais, sobre sua rotina, sobre aposentadoria. Diferente da conversa de 2010, ele tirou dos cachorros (como diz o ditado) e botou no Estado e, principalmente, no governo. Não poupou críticas ao descaso com as pessoas idosas no Brasil, falou do aumento da pobreza e se indignou com a tragédia/crime ambiental que assolava o litoral do Nordeste naqueles dias, acusando o governo Bolsonaro de ter grande culpa nesse acontecimento. Para ele, esta foi uma clara estratégia para se vingar do Nordeste. Ao avaliar o referido governo afirmou: "pior que isso só o inferno".
Não sei onde está o erro, mas Seu Evandro desta vez me disse que é natural de Curaçá (BA). Falamos também sobre a relação com seus filhos e ele me contou que tem uma vizinha "Irmã Dulce". Agora com mais de 80 anos, ele segue vivendo no bairro Maria Gorete com seus cães, passando suas manhãs na rua com seu carrinho sortido de lanches e cigarros e entendendo muito sobre a política brasileira. Vida longa a Seu Evandro! E que a política do nosso país nos permita uma conversa mais positiva daqui uns anos.
Por Érica Daiane Costa
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