Em 5 de outubro, dia da queda do arraial do Conselheiro, acordei com uma passagem de Drummond, pinçada numa crônica de 1965. Ei-la: “Canudos é dessas coisas de doer na consciência”. É sério, Drummond falou de Canudos. Aliás, todos (ou quase todos) os intelectuais brasileiros falaram (e falam) de Canudos, desde Machado até nosso Ivan Santtana, que acaba de publicar um romance sobre o tema. Uns falaram bem, outros, mal. Mas falaram.
Verdade é que, passados tantos anos, o tema Canudos continua a despertar o interesse de mais e mais pessoas, aqui e alhures. Prova disso foi a última festa literária de Paraty, no Rio. Não só a festa. A festa e a cobertura da festa, é bom que se diga. Basta lembrar que num só dia três dos principais jornais do país trataram do arraial do Conselheiro, paralelamente ao tema de Euclides, o homenageado do evento.
Bem melhor seria se esse interesse, se essa fascinação por Canudos contribuísse para uma melhor compreensão do Brasil, como tão bem e tão pedagogicamente intuíra o velho Suassuna. (É claro que nem sempre é assim. Há uns que optam pelo colorido épico, outros, pelo teatral, outros ainda, pela pujança da saga sertaneja. Conheço um cuja admiração não vai além do traço bélico, principalmente quando o assunto é o embate sangrento entre o rude jagunço e o heroico brasileiro) (sic).
Sim, Canudos é o Brasil em cores vivas. E, como tal, é fundamental (reinvoco Ariano), para compreender o Brasil. O Brasil de ontem, mas principalmente o Brasil de hoje, com suas feridas, com seus males e com seus ódios. As mesmas feridas, os mesmos males e os mesmos ódios que mataram Canudos (e sua gente) e que pautaram a vida republicana ao longo desses 130 anos de golpes e contragolpes.
Voltando a Drummond
Bom, não sei bem a que tipo de consciência quis se referir o poeta. Só sei do contexto em que isso surgiu, que foi o da publicação do livro (uma espécie de diário de bordo) do general Funchal Garcia, que, – uma vez na reserva –, resolvera percorrer o Brasil profundo, ouvindo e anotando histórias. Funchal estivera entre os sobreviventes da chacina e colhera uma série de narrativas, que depois transcreveria no seu livro intitulado “Do litoral ao sertão”, saído em 1965, pela editora do Exército.
Estaria o escriba de Itabira se referindo à consciência nacional – aí incluídas a igreja, a intelectualidade e a onipresença dos chamados “cidadãos de bem” – frente à charqueada comandada pelo Brasil oficial contra o Brasil real, a quem nem mesmo o direito de defesa fora assegurado?
Pode ser que sim, pode ser que não. Seja como for, o crime continua impune e até hoje não se viu esboçar, da parte dessa (im)provável consciência o mais mísero mea-culpa.
Canudos é um grito que ecoa no seio desse (de) sertão chamado Brasil, à espera de ações concretas que façam jus aos planos do Conselheiro e reparem os crimes desferidos contra o povo pela burguesia parasitária, amante de terras e de dindim, mas inimiga de gente e de quem gosta de gente.
A tarefa é urgentíssima e há que ser concretizada por meio de políticas que sejam capazes de garantir plena cidadania à gente sertaneja (e também à não sertaneja) – não a cidadania da retórica fácil e oportunista, mas a cidadania do pão, do vinho, do lápis, do laptop, a cidadania do talão de cheque no bolso, como bem pontificava um democrata da Bahia.
Quando isso ocorrer, (só se isso ocorrer), o Brasil estará mais perto de redimir-se perante o sertão ensanguentado e de ficar quite com sua consciência, embora não acredite eu nesse negócio de dor de consciência, pelo menos nesse caso de Canudos. Não só nesse claro! Mas em tantos outros.
É bem provável que Drummond, embora gauche – mas não propriamente do meu modo – não tenha pensado exatamente assim. E isso é bom.
José Gonçalves do Nascimento - Escritor
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