O Brasil atravessava etapas conturbadas da República Velha, na década de 1920, quando Sebastião Biano ganhou do pai seu primeiro pífano: um pequeno pedaço de taboca que, no improviso, servia como flauta de timbre intenso e estridente. Único integrante original vivo da Banda de Pífanos de Caruaru, um dos mais antigos grupos em atividade no país, Sebastião completa 100 anos neste domingo (23).
O músico presenciou momentos históricos com o conjunto, tocou para Lampião, conquistou o Sudeste, colaborou com Gilberto Gil e recebeu a condecoração de Ordem do Mérito Cultural, em 2006, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O artista, que reside em São Paulo, retornou a Caruaru na quinta-feira (20) para acompanhar a exibição do documentário Pipoca moderna, que aborda sua trajetória e legado. Essa foi a primeira sessão do longa-metragem no Nordeste, após estreia no festival In-Edit, em São Paulo, no último domingo.
Biano também é um dos homenageados do São João de Caruaru de 2019, junto com a cantora Marlene do Forró, o artesão Severino Vitalino e o fogueteiro Manoel Mamoca - os dois últimos, falecidos.
O documentário foi feito pela Luni Produções, com apoio do estúdio Carranca. As filmagens foram realizadas no Recife, Caruaru e Riacho das Almas, também no Agreste. Hélder Lopes já havia trabalhado com a figura de outro expoente nordestino no filme Onildo Almeida - Groove man, compositor que trabalhou com Luiz Gonzaga.
“Estava na linha de falar dessas figuras esteticamente diferentes, que rompiam com um paradigma da música regionalista ou restritiva de música popular. Nas conversas com Onildo Almeida, falamos muito sobre a Banda de Pífanos de Caruaru, sobretudo pela colaboração com Gilberto Gil no álbum Expresso 2222, em 1972”, explica o diretor, ao Viver.
O ponto de partida para as gravações foi o título de cidadão caruaruense que o artista recebeu da Câmara de Vereadores de Caruaru, em 2016. Como o músico passou muito tempo em São Paulo, a ida ao Agreste soa como retorno às origens.
Pipoca moderna (o título faz homenagem ao dueto com Gilberto Gil) soa como um road-movie que acompanha o músico em shows públicos, homenagens, encontro com novos musicistas como Amaro Freitas, Henrique Albino e os zabumbeiros Zé Gago e Mestre Basto. Também mostra momentos íntimos com familiares, como um reencontro com Alice Biano, viúva de Benedito, que é irmão do artista e outro fundador da banda.
O documentário não conta com entrevistas tradicionais, nem tenta resgatar aquele período difícil no Sertão.
"É um longa-metragem de observação. Sebastião via Caruaru como um espaço muito emocionante, no sentido mais honesto da palavra. Nos permitiu conviver esses dias, quer fosse caçando um preá ou tomando uma cachaça. Transformamos esses momentos em um filme, levando o espectador à intimidade de um clássico nordestino, que ajudou a construir nosso imaginário junto com nomes da xilogravura e do cordel".
Um fator que facilitou a produção e também impressionou a equipe foi o vigor físico do recém-centenário, sobretudo quando está tocando o instrumento. “Ele tem muita força, você percebe sua destreza quando ele toca, até mesmo o rejuvenescendo. Ele consegue executar movimentos com muita facilidade diante de dificuldades inerentes à condição de centenário. Ele é um virtuoso, um músico genial”, completa o diretor.
Foi com essa vitalidade que Sebastião Biano concedeu entrevista por telefone, ainda em São Paulo, enquanto a filha Alzira Biano arrumava a mala para mais um retorno a Caruaru. “Fico feliz com a homenagem através do filme, veio em um momento em que me sinto muito bem, graças a Deus”, diz o músico, que tentar elencar alguns episódios marcantes dos 100 anos de vida.
Eu e meu pai vivíamos de agricultura, não existia outro trabalho naquela época. Certo dia, na roça, ele pegou um cano de taboca (espécie de bambu) e fez quatro furos. Quando nós sopramos, saía o som. Depois ele fez outro com seis furos para tocar o que chamávamos de moda”, relembra o músico, que assoprava o pífano ao lado do irmão Benedito.
Um bombo trançado de cordas e um par de pratos completava o pequeno grupo do Sertão de Alagoas, que peregrinou o Nordeste fugindo de uma seca que castigou a região na década de 1930. “Era como uma guerra perigosa contra a falta de água, chegamos a viver um ano sem chuvas.”
O grupo acabou chegando em Caruaru em 1939, quando adotou o nome Banda de Pífanos de Caruaru. Inicialmente, viveram em uma zona rural, enquanto o pai cuidava de um sítio com 20 cabeças de gado. Depois, se mudaram para uma zona mais urbana, na Rua Preta, no bairro do Kennedy.
“Chegou um momento que todo mundo queria ver a banda. O prefeito da cidade nos visitava de vez em quando e certo dia levou Gilberto Gil lá. Ele ficou sentadinho no meio da sala, no chão”, relembra. Mais tarde, seria lançada a música Pipoca moderna, no disco Expresso 2222.
Seguindo dicas do mesmo político, Biano rumou para São Paulo na década de 1960 com outros parentes e integrantes: João, Gilberto, Amaro e José. Eles queriam mais oportunidades na área musical e conseguiram notoriedade nacional.
Em 2004, venceram a categoria Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras no Grammy Latino, com o disco Pátio do forró. No retorno a Caruaru, Sebastião espera conseguir ver o filme com mais calma, pois a sessão em São Paulo foi “muito agitada”.
“Gosto de estar velho, pois isso significa estrada. Aliás, quem fica velho é ferro. Eu não sou velho, não. Ainda me sinto um moço, bonito e cheiroso”, diz, aos risos, com o habitual bom humor.
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