A censura está proibida no Brasil. Mas ela pode ser exercida, também, sob o modo de atentar contra a vida do comunicador, sob a forma de ameaçar a sua segurança, para que ele deixe de dizer, para que se omita. Sempre que isso acontece, e estando o Brasil no ranking dos países perigosos para exercer a liberdade de imprensa, é preciso compreender que essas ameaças são um modo de censura à própria imprensa.” A afirmação é da presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e procuradora-geral da República, Raquel Dodge, durante a solenidade de celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, ocorrida nesta terça-feira, 30 de abril, na sede do Conselho, em Brasília.
Raquel Dodge complementou que o Ministério Público e o Poder Judiciário têm de priorizar o processamento das ações penais nos casos de crimes realizados contra comunicadores. “É preciso superar essa triste marca de impunidade que o Brasil carrega em relação àqueles que cometeram crimes contra jornalistas”. A medida é necessária, de acordo com Dodge, para que se fortaleçam o exercício da liberdade de imprensa e a democracia liberal no Brasil.
A solenidade em celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa foi promovida pela Presidência do CNMP e pela Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp). Na ocasião, foram divulgados dados do relatório “Violência contra comunicadores no Brasil: um retrato da apuração nos últimos 20 anos”. O documento aponta, por exemplo, que, de 1995 a 2018, no Brasil, houve 64 casos de profissionais de comunicação assassinados em função do exercício da profissão.
Também foi divulgado, pela primeira vez em português, material produzido pela representação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil denominado “Punir o crime, não a verdade: destaques do relatório de 2018 da Diretora-Geral da UNESCO sobre segurança dos jornalistas e o perigo da impunidade”. De acordo com o relatório, nos anos de 2016 e 2017, um jornalista foi morto a cada quatro dias, totalizado 182 mortes em todo o mundo.
Durante o evento, a diretora e representante da UNESCO no Brasil, Marlova Noleto, destacou que o relatório da entidade alerta para a importância de os crimes contra comunicadores não permanecerem impunes. Marlova enfatizou que “quando se cala a voz de um jornalista, cala-se a voz da sociedade”. Além disso, enalteceu o trabalho realizado pelo CNMP em relação ao acompanhamento dos casos relatados no relatório.
Por sua vez, a secretária de Direitos Humanos e Defesa Coletiva do CNMP, Ivana Farina, abordou a atuação do Ministério Público no processamento dos crimes cometidos contra comunicadores. Na oportunidade, Farina falou sobre a proposta, que tramita no CNMP, por meio da qual se recomenda que todas as unidades do Ministério Público priorizem a célere tramitação da persecução penal nos casos de crimes contra vida, integridade física e de ameaça, tentados e consumados, praticados contra jornalistas, profissionais de imprensa e comunicadores no Brasil, no exercício da profissão ou em razão dela. “O MP atua sabendo que um crime contra a vida de um comunicador também é um atentado contra a democracia”, concluiu.
Por sua vez, o secretário de relações institucionais do CNMP, Nedens Ulisses Vieira, realçou que “um atentado contra cada profissional de imprensa atinge aquilo que é mais fundamental e mais essencial na democracia brasileira: a capacidade de a sociedade tomar conhecimento da realidade social, política e econômica”.
Já o membro auxiliar da Enasp, Emmanuel Levenhagen, apresentou os principais pontos do relatório “Violência contra comunicadores no Brasil: um retrato da apuração nos últimos 20 anos”. Ele disse que o projeto recebeu amplo apoio do conselheiro e presidente da Enasp, Luciano Nunes Maia, e salientou que o estudo teve três objetivos: elaborar estatísticas oficiais sobre o assunto; realizar mapeamento analítico dos casos; e sensibilizar os atores do Sistema de Justiça (Ministério Público, Poder Judiciário e Polícia) da importância da apuração, do processamento e da condenação dos autores dos crimes cometidos contra jornalistas. Para Levenhagen, “esses crimes representam sério risco ao regime democrático”.
Por fim, o conselheiro do CNMP Sebastião Caixeta afirmou que o diagnóstico realizado no relatório é uma oportunidade “para que o CNMP, o MP e a sociedade brasileira possam refletir acerca dos crimes cometidos. Ele completou que deve ser feita uma reflexão “sobre a necessidade de prevenção e de preservação das condições mínimas de trabalho dos profissionais”.
Também compuseram a mesa da solenidade os conselheiros do CNMP Silvio Amorim e Dermeval Farias.
Relatório da Enasp
Ao produzir o documento, a Enasp/CNMP teve como objetivo mapear e consolidar informações sobre o andamento processual dos casos de comunicadores assassinados em função do exercício da profissão. A intenção foi reunir, pela primeira vez, em uma só publicação, dados oficiais do Estado brasileiro sobre os processos judiciais de homicídios de profissionais da Comunicação.
A partir de informações fornecidas pelos Estados em que ocorreram os crimes, a Enasp/CNMP procurou explicar, caso a caso, a situação atual do respectivo processo judicial. A discriminação do número processual (ou, a depender, do inquérito policial) visa a habilitar o acompanhamento por quem quer que se interesse pelo tema. Ao final, nas conclusões do relatório, a partir dos dados totais, procura-se entender se de fato houve e há impunidade na apuração desses assassinatos, bem como se existem eventuais falhas institucionais a serem reparadas (seja na investigação, seja no fluxo do processo judicial).
A Enasp/CNMP valeu-se de documentos oficiais, tomando como fonte informações concedidas pelo Ministério das Relações Exteriores, pesquisas realizadas pelo Ministério Público Federal e Ministérios Públicos Estaduais, publicações da UNESCO, bem como pesquisas realizadas diretamente nas plataformas digitais dos Tribunais de Justiça dos Estados. Por fim, em alguns casos, foi necessário recorrer a informações difundidas por empresas de Comunicação em notícias jornalísticas disponibilizadas virtualmente. Todas as fontes são referenciadas ao longo do relatório.
Até o final da elaboração do relatório, havia informações processuais sobre 57 dos 64 casos. Destes, 16 estão “em andamento”, o que significa que seguem sob investigação policial. Categorizados como “não solucionados” são sete casos, ou seja, a autoria não foi revelada após apuração do fato.
Não foi possível obter respostas até o final da elaboração do relatório sobre sete casos. Esses são categorizados como “sem informação”.
Na divisão por Estado, chama atenção a quantidade de fatos ocorridos no Rio de Janeiro, que lidera como a unidade da Federação mais violenta para o trabalho de comunicadores. Além de estar à frente em número absoluto de atos de violência extremada, o estado fluminense foi palco de dois casos simbólicos – os assassinatos de Aristeu Guida e Reinaldo Coutinho. Em seguida, aparecem Bahia e Maranhão, com sete e seis casos confirmados, respectivamente.
O relatório ainda indica um pico de violência entre 2011 e 2016. Com oito homicídios, o ano de 2015 representou o ápice da violência contra profissionais de imprensa. Apesar de os anos seguintes indicarem uma tendência de diminuição da taxa de homicídios contra esses profissionais, 2018 voltou a apresentar taxas mais altas, quando foram mortos quatro comunicadores no exercício de suas funções.
Relatório da UNESCO
Este relatório se debruça sobre o assassinato de jornalistas no mundo inteiro, a forma mais definitiva de censura. No entanto, esses homicídios são apenas a ponta do iceberg dos ataques a profissionais da imprensa, que vão desde ataques físicos não letais, sequestros, detenções ilegais, ameaças, assédio on-line e off-line, até retaliações a membros da família.
Em 2016 e 2017, um jornalista foi morto a cada quatro dias. Uma testemunha foi silenciada a cada quatro dias. O número total de vítimas chegou a 182, com assassinatos acontecendo em todas as regiões do planeta. Essas mortes deixam claros os riscos extremos que os indivíduos que exercem essa profissão podem enfrentar.
Alguns desses ataques fatais aconteceram em países que antes não eram afetados por tais atos extremos de violência contra jornalistas. No entanto, nem todas as regiões foram atingidas na mesma medida. Em 2017, o maior número de assassinatos ocorreu na região da Ásia e Pacífico (34% do total de homicídios), ao passo que, em 2016, o maior número de mortes se deu nos Estados Árabes (31%).
O aumento do número de jornalistas mortos fora de zonas de conflitos armados pode ser percebido nos últimos anos, com a maioria (55%) assassinada, em 2017, em países que não vivenciavam conflitos. Muitos desses profissionais estavam trabalhando com temas relativos a corrupção, tráfico e irregularidades políticas. Em conformidade com as observações de anos anteriores, os jornalistas locais continuam representando a grande maioria das vítimas.
O aumento do percentual de mulheres jornalistas entre os que foram mortos em 2017 (14%) marca a continuação de uma tendência que se tornou aparente nos últimos anos. No entanto, embora a proporção de mulheres entre os casos fatais tenha aumentado, uma clara maioria dos profissionais de imprensa mortos é composta por homens.
A impunidade por esses crimes continua sendo um desafio importante. Das 1.010 mortes registradas pela UNESCO nos últimos 12 anos, apenas 115 foram seguidas por um processo judicial que culminou com a condenação de um ou mais autores. Isso significa que 89% dos casos continuam sem solução. A impunidade dos crimes contra jornalistas incentiva autores e produz autocensura, na profissão e entre o público.
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