O filme Marighella, exibido em Berlim durante a edição de 2019 da Berlinale, é um forte e inquietante retrato sobre o período da ditadura militar dos anos 60 e 70 no Brasil. A obra foi baseada no livro Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, do jornalista Mário Magalhães. Ainda que o mote seja o militante negro e baiano, a história dirigida por Wagner Moura ganha fôlego ao abordar a luta de cidadãos brasileiros e estudantes que se opunham ao governo militar daquela época.
Carlos Marighella é vivido por Seu Jorge, que construiu um personagem e tanto, cheio de minúcias e facetas, equilibrando-se entre a solidão e a tristeza; o senso de humor e a esperança. Apesar do roteiro bastante coerente, focado na luta política do militante, faz falta uma maior riqueza em torno das origens do próprio personagem-título. Mais de uma vez, o personagem fala de sua mãe, mas pouco se consegue saber sobre seu passado familiar e sua formação política.
Sua vida pessoal é contada no tempo da própria narrativa do filme, a partir de dois eixos. De um lado, a angústia que o separa do filho, Carlinhos. De outro, as preocupações que afligem a esposa, Clara, vivida por Adriana Esteves, de quem Marighella também se afasta por conta das perseguições políticas.
Embora explicável, já que se trata de uma obra baseada em fatos reais, nada perturba mais no filme do que a violência. O diretor Wagner Moura teve o bom senso de não carregar a mão em cenas de tortura propriamente ditas. Entretanto, tiros, mortes, porrada e sangue incomodam os espectadores menos adeptos a essa estética.
Neste quesito, Bruno Gagliasso chama atenção como o delegado Lúcio, afeito à tortura de “vermelhos”. Outros personagens que merecem destaque são os dos atores Humberto Carrão e Jorge Paz, jovens integrantes do MR-8. Vale a pena ficar de olho no desfecho da sequência em que os dois amigos conversam e ficam bêbados. Uma cena absolutamente impactante, bem construída e uma lição de alteridade.
A imprensa merece atenção especial no filme e as mordaças ao jornalismo são referenciadas mais de uma vez. Em uma cena, o delegado Lúcio impõe ao jornalista o que deve ser publicado. Outra sequência reconstrói um episódio clássico da história brasileira, quando o movimento Ação Libertadora Nacional usa uma estação de rádio na Avenida Paulista para transmitir um manifesto de autoria de Marighella.
A trilha, com músicas de Chico Science, recupera a imagem de um Brasil de ritmo pulsante, intenso e que luta para se impor. Ao som de Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória, de Gonzaguinha, o filme emociona com cenas idílicas de um Brasil, apesar de tudo, cheio de sol e mar. E esperança.
É pretensão dizer que Marighella é um filme “contra” o governo que está no poder. É uma obra engajada que trata de nós, brasileiros. É um filme sobre o Brasil. Ao contrário de governos – que talvez não mereçam filme algum – o nosso país e o nosso povo merecem filmes, livros, peças de teatro e exposições que nos façam pensar em nós. É isso que torna a arte e a cultura importantes. É exatamente por isso que Marighella incomoda alguns setores e autoridades.
A Berlinale elegeu Synonymes a melhor produção cinematográfica da edição de 2019. Trata-se de uma obra do diretor israelense Nadav Lapid, que aborda temas pertinentes ao mundo contemporâneo: migração, liberdade e identidade. Igualmente engajado, Marighella – ainda que não tenha concorrido à premiação – foi ovacionado pelo público na Alemanha ao propor a discussão de questões como ditadura, racismo e direitos humanos. Tudo isso faz deste um filme que precisa ser assistido pelos brasileiros.
*Enio Moraes Júnior é um jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo
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