Ricardo Boechat, morto aos 66 anos num acidente de helicóptero na Rodovia Anhanguera no último dia 11/02, era representante de uma escola de jornalismo que valorizava, sobretudo, a exclusividade da informação. A comoção em torno da sua morte é – para além do seu grande talento e capacidade de comunicação – o reconhecimento da importância desse tipo de profissional capaz de transitar por diferentes temas e mídias com a mesma desenvoltura.
A trajetória de Boechat demonstra uma filiação a certo espírito jornalístico difícil de definir mas reconhecível pelo público que se manifestou em massa nas redes sociais lamentando a perda de um profissional essencial para as questões contemporâneas.
Os colegas de profissão também expressaram seus sentimentos, reforçando a característica de que Boechat não era de fazer concessões. Havia nele um compromisso com a verdade factual vista sob o lastro de uma visão de mundo forjada nas antigas redações, na busca pela notícia e na formação intelectual e humana.
Boechat chegou muito jovem ao jornalismo e enfrentou, de cara, sua primeira contradição. De formação esquerdista, foi trabalhar no jornal carioca Diário de Notícias com o mais famoso colunista social brasileiro, Ibrahim Sued (1924-1995).
Foram 14 anos de intenso aprendizado como disse em depoimento ao portal Memória Globo.“Era uma coluna que se prevalecia desta situação de visibilidade, de notoriedade do seu titular. Era uma coluna feita por uma equipe pequena, eram dois repórteres trabalhando e ele, muito idiossincrática. A notícia era, para ele, o que ele achava”.
Os anos ao lado do cronista social refinaram o faro pela informação e a busca das fontes primárias, o que fez de Boechat um campeão de prêmios.
Levantamento divulgado pelo Portal dos Jornalistas, dá conta da conquista de três prêmios Esso, um White Martins de Imprensa, além de nove Comunique-se. Pelo acúmulo de troféus Comunique-se, entrou para a Galeria de Mestres do Jornalismo da competição e passou a ser considerado hors-concours em duas categorias: Apresentador/Âncora de Rádio e Colunista de Notícia.
Do Diário de Notícias se transfere, no início dos anos 1980, para O Globo, onde conquista o status de um dos colunistas mais influentes do país. Com passagens pelos jornais O Dia, O Estado de S.Paulo e Jornal do Brasil, o jornalista se torna respeitado nos veículos impressos antes de se reinventar em outros meios.
Nos anos 1990, ganha seu espaço na televisão como colunista do Bom Dia Brasil, na TV Globo, telejornal apresentado naquele período por Renato Machado e Leilane Neubarth. Trabalhou ainda no Jornal da Globo e passou também pelo SBT. Na Band, emissora onde encerrou a carreira, Boechat chegou a ocupar a direção de jornalismo. Atualmente apresentava o Jornal da Band na TV e programa na Band News FM , além de escrever uma coluna na Revista Isto É.
A sua demissão do jornal O Globo no auge da fama como editor da coluna do Sawann se tornou um episódio emblemático das relações de poder em torno do jornalismo, sobretudo quando o repórter se torna a pauta.
A saída se deu após publicação pela revista Veja de grampo em que Boechat adiantava à Paulo Marinho a matéria que seria publicada no jornal. Marinho trabalhava para o empresário Nelson Tanure. Boechat publicou um artigo com esclarecimentos sobre o caso no Jornal do Brasil que diz muito sobre a forma como ele encarava o jornalismo e as próprias contradições. O texto foi reproduzido pelo Observatório da Imprensa em julho de 2001. Veja abaixo os principais trechos:
“A notícia oculta”, copyright Jornal do Brasil, 17/7/01
“Passei 31 dos 49 anos de minha vida, incluindo domingos, feriados e madrugadas, ligado a O Globo. Saí de lá há três semanas, demitido a sangue-frio, por um delito que O Globo, até agora, não conseguiu explicar nem aos muitos amigos que lá deixei. Não se pense, entretanto, que a casa que me criou foi injusta comigo. Eu mereci ser demitido. O que O Globo escondeu foi a verdadeira razão que o levou a punir-me. Seus reais motivos não foram os que fez crer ao transcrever na íntegra, dia 25 de junho, um grampo telefônico publicado na véspera pela Veja, numa reportagem em que a revista se esmerou em me apresentar ao país como um picareta a serviço de meganegociatas empresariais. Mas da Veja falarei depois. Em primeiro lugar, por respeito a O Globo e a mim mesmo, mas em especial aos leitores que compartilhamos, quero fazer o que meus antigos chefes não fizeram, expondo as falhas de conduta que culminaram com meu castigo.
Cruzei a barreira da boa conduta profissional por um motivo tolo: vaidade. A vaidade de me supor em posição de prestígio nos dois maiores jornais de minha cidade cegou a autocrítica com que sempre procurei orientar minha atividade jornalística. Cheguei ao extremo de orientar Nelson Tanure numa conversa que ele teria com João Roberto Marinho, um dos proprietários das Organizações Globo, como revelam trechos não divulgados do mesmo grampo. Com essa atitude, dei à direção de O Globo subsídios para duvidar de minha fidelidade? e razões para agir como agiu.
Mas essa escolha impôs a O Globo, que não poderia degolar seu colunista sem nada explicar, o papel de pregoeiro passivo daquilo que Veja tentou me atribuir. E se a revista, em seu fundamentalismo sob encomenda, apenas me agrediu, O Globo, onde entrei aprendiz, me envergonhou. Reconheço que devo-lhe desculpas e não ele a mim. Mas devoto-lhe o respeito que ele publicamente me negou. Ao jornal, teria sido melhor ser franco. Sua franqueza com certeza me seria hostil, mas não ofenderia a minha dignidade.
O escândalo revelado por Veja naquela semana consumiu-lhe sete páginas. Na edição seguinte, nenhuma linha. Esse incomum desaparecimento de uma suposta grande reportagem é suficiente para expor o quanto era especiosa e manipulativa, e eivada de má-fé a versão que a revista teceu em torno da gravação de uma conversa minha com Paulo Marinho, meu amigo e informante de décadas, hoje assessor de Tanure.
Quem me iniciou nos caminhos do colunismo foi Ibrahim Sued, de quem fui foca em minha distante juventude. Aprendi com ele que a matéria-prima do colunista são as notas em primeira mão. A coluna que assinei em O Globo consagrou-se entre as mais lidas do Brasil graças à capacidade de chegar à notícia antes das outras. Seu acervo de furos, alguns de enorme repercussão, foi construído a partir de relações que mantive com todos os tipos de informantes fossem eles bem-intencionados ou não, fossem eles figuras de reputação ilibada ou nem tanto.
Não vejo razão para delegar a terceiros, muito menos a teóricos da deontologia e a autoproclamados impolutos guardiões da ética, a responsabilidade de fixar os termos de minhas relações com as fontes que me abastecem. As regras que ditam essa ligação de confiança pertencem soberanamente ao repórter e ele deve explicações exclusivamente à sua consciência e a seus leitores.”
O repórter Ricardo Boechat dedicou sua vida a buscar a notícia e não se furtou ao saudável exercício da autocrítica. O jovem que chegou aos 17 anos numa redação descobriu ali o sentido que iria dar a sua vida e foi essa vocação que o tornou querido pelos diferentes públicos com quem dialogou na sua trajetória. Num período de transformação do jornalismo, o exemplo de Boechat demonstra que temos muito a aprender com os mais antigos.
Jorge Luis Borges escreveu que quando alguém morre leva consigo uma particularidade “uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória do universo como conjecturam os teósofos.” Boechat leva consigo, entre outras coisas, um jeito próprio de praticar jornalismo. A busca pelo prazer de trazer a notícia que ninguém deu, nova como os jornais que chegavam em outras manhãs. Esse prazer ele transferiu para outros meios e tempos, deixando sua marca singular no cenário contemporâneo. O silêncio de sua voz fará falta, ainda mais num momento em que precisamos tanto de informação.
Pedro Varoni é editor do Observatório da Imprensa e pesquisador em pós doutorado no Departamento de Informação e Cultura da ECA/USP.
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