Pelas mãos de Maria José Galdino da Silva, de 61 anos, mais de 2 mil crianças nasceram. Conhecida como Zezé Parteira, ela se dedica ao ofício há 43 anos na comunidade de Taquara de Cima, em Caruaru (PE). Cada criança de quem fez o parto tem o nome anotado em um caderno que a acompanha por quatro décadas. Nascida em Gravatá (PE), Zezé aprendeu a ser parteira com mãe, a paraibana Maria do Carmo da Conceição, que também era rezadeira. E é essa transmissão de conhecimento, de geração a geração, que marca o ofício das parteiras tradicionais.
Tudo o que a parteira aprendeu foi acompanhando o trabalho da sua mãe na adolescência, ainda que cercada de tabus. "Depois que eu comecei a fazer parto que soube que se nascia pela vagina. Nossa mãe nunca passava isso, porque ficava com vergonha”, lembra. Ela fez seu primeiro parto aos 18 anos e conta que nunca cobrou por nenhum deles. Em troca, às vezes recebia ovos, leite ou mesmo galinhas. Depois, se tornou agente de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), onde atua há mais de 20 anos.
Há quatro décadas, no sertão pernambucano, a estrutura para realizar um parto era diferente. Usava um candeeiro para iluminar o local, em partos realizados à noite, e chegou a dar banhos em recém-nascidos na tampa de uma cuscuzeira. Hoje, com energia elétrica, Zezé relata que o cenário mudou na região. Menos a importância da parteira para a comunidade, que não se restringe a fazer partos. Zezé explica que está junto da gestante do primeiro mês em que falta a menstruação até o nascimento. E, por viver na comunidade, acompanha o crescimento de cada criança.
A influência de Zezé na comunidade explica como a parteira com quatro décadas de profissão é, hoje, a única mulher entre os 23 vereadores na Câmara Municipal de Caruaru. Nas eleições de 2016, ela obteve 945 votos disputando uma vaga pelo Partido Verde (PV) — número ainda menor do que de crianças que auxiliou chegar ao mundo. Na Câmara, ela centraliza seu trabalho em pautas relacionadas à saúde e o direito das mulheres. Tem trabalhado para abrir uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no bairro onde viveu por toda a vida e onde mantém a casa de parto Mamãe Zezé.
O Ministério da Saúde não tem uma estimativa de quantas parteiras tradicionais existem no Brasil, mas define o ofício como a assistência ao parto domiciliar que tem como base saberes e práticas comunitárias. O termo inclui também mulheres indígenas e quilombolas.
Mãe de 10 filhos, Zezé tem repassado seu conhecimento para a neta mais nova. Ela afirma que o interesse na prática — focada no meio rural e entre mulheres analfabetas — tem diminuído ao longo dos anos. “Estamos em extinção”, alerta. “Acho que hoje, em Caruaru, somos só três parteiras”.
Os dados do Ministério da Saúde mostram que, proporcionalmente, os nascimentos em domicílio estão em queda. Em 2014, foram registrados 21.262 partos domiciliares. Ou seja, 0,71% dos mais de 2,97 milhões de nascimentos. Já em 2017, foram 19.310 partos realizados em casa — o que equivale a 0,66% dos 2,91 milhões de nascimentos daquele ano.
Mas, ainda assim, uma nova geração de parteiras tradicionais resiste. Marcelly Carvalho, de 46 anos, é uma delas. “Eu recebi um conhecimento da minha mãe porque na prática das parteiras tradicionais é assim que se repassa, uma mestra ou você acompanha uma parteira e ela te ensina até o momento que você faz o primeiro parto”, conta ela, que vive em Olinda (PE).
Marcelly é uma das fundadoras da ONG C.A.I.S do Parto (Centro Ativo de Integração do Ser). No braço, tem uma tatuagem para lembrar um dos 400 partos que já fez nos 12 anos que atua como parteira. Este, segundo ela, foi o mais difícil, mas comemora que nunca teve um óbito.
“O parto, para mim, é um grande momento de cura, um grande portal. É um momento de ancoramento de muita força, da espiritualidade. Não uma fisiologia, mas um momento sagrado. De conexão para todos. Na hora que uma criança vai fazer seu rito de passagem, que é o nascimento, se ancora uma grande força na terra. E esse momento é a hora que precisamos nos preparar para a chegada de um mestre.”
Para ampliar o apelo entre as mais jovens, Marcelly defende a regulamentação da profissão de parteira. A Portaria 1.459 de 2011, do Ministério da Saúde, reconhece e apoia o parto domiciliar assistido por parteira tradicional. A normativa define, inclusive, a existência do Kit da Parteira, que disponibiliza material descartável para sua assistência. Mas não há regulamentação do ponto de vista trabalhista.
O Projeto de Lei 359 de 2015, que tramita com esse propósito, está parado no Congresso Nacional desde 2016. Por enquanto, a falta de uma legislação sobre o tema impõe dificuldades para a renumeração e barreiras, já que elas não podem se responsabilizar por um parto de risco habitual em hospitais. “A gente não tem essa autorização por não termos uma formação técnica para estar no hospital”, pontua Marcelly.
O Ministério da Saúde informou que parteiras podem acompanhar gestantes na rede de assistência “sempre que ela seja a acompanhante de sua escolha ou quando existir parceria e diálogo entre os estabelecimentos de saúde do município e a parteira ou associação de parteiras”.
Por causa das restrições, Marcelly enxerga com bons olhos o movimento, também nas grandes cidades, em busca da humanização do parto, com a formação de uma rede parteiras urbanas, sejam técnicas ou profissionais. “Todo o tipo de formação é importante. As academias têm que começar a olhar para essa questão com um olhar mais humano e sensível”, pontua.
A falta de regulamentação da profissão e de cursos dedicados exclusivamente a estudos sobre o parto no Brasil fez com que a parteira uruguaia Maria Cecília Pintos deixasse de exercer o ofício no país. Formada na Escola de Parteiras de Montevideo, ela não conseguiu revalidar seu diploma desde que chegou no Brasil, em 1987.
Maria Cecilia chegou a trabalhar na Santa Casa de Santa Vitória (RS), município onde vive, na fronteira com o Uruguai. “Os médicos que trabalhavam conosco já conheciam o trabalho das parteiras no Uruguai e valorizavam muito nosso trabalho. Então, eles confiavam plenamente”, lembra ela, que decidiu fazer um técnico de enfermagem para trabalhar no país.
Maria Cecília relaciona a prática das parteiras com a redução da violência obstétrica. “A gente tenta, principalmente, dialogar com a paciente e com a família para tomar nossas atitudes”, aponta. “Eu acho que por causa disso, por não existir parteiras [como profissão] no Brasil, tem tanta cesárea. Não tem uma pessoa em quem confiar durante o trabalho de parto.”
Em 2014, as cesáreas feitas pelo SUS corresponderam a 57,07% dos partos. Já em 2017, com dados ainda preliminares, as cirurgias responderam a 55,51% dos nascimentos.
Hoje, a Universidade de São Paulo (USP) é a única instituição no país que oferece a graduação direcionada especificamente para a formação de parteiras. Depois de 33 anos de extinção, o curso superior de obstetrícia foi reaberto em 2005. A obstetra Bianca Zorzam, do Coletivo Feminista de Sexualidade, se formou na primeira turma do curso, em 2008.
“A gente sabe que a maioria das cesáreas acontece sem indicação clínica. Elas não precisam acontecer para salvar a vida da mãe e do bebê. E vários estudos indicam que as mulheres são convencidas, durante o pré-natal, a fazer uma cesárea. Elas começam com um desejo de ter um parto normal e, ao longo do pré-natal, com seu médico, são convencidas de que a cesárea seria a melhor opção; sendo que, na verdade, a cesárea é uma cirurgia onde há risco”, explica a especialista.
Bianca também trabalha na Casa Angela, na casa de parto localizada na zona sul, na periferia da cidade de São Paulo. O local, inaugurado em 2009, é reconhecido pelo trabalho de humanização da assistência à mulher gestante. O espaço conta com uma equipe multiprofissional, composta por médicas e até professoras de yoga, e desde 2016 atende em convênio com o SUS.
Ainda que reduzindo timidamente na rede pública, o Brasil tem um padrão de cesárea bastante elevado quando comparado com a taxa recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O órgão internacional recomenda que a taxa de cesárea seja de 15%. Mas, segundo a pesquisa Nascer do Brasil, conduzida pelo Instituto Fiocruz, este índice chega a 88% dos nascimentos em hospitais do sistema particular.
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