A morte de uma das mais importantes representantes do candomblé brasileiro, Mãe Stella de Oxóssi, 93 anos, ontem (27), desencadeou uma disputa judicial entre representantes da Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá e pessoas próximas à sacerdotisa, como sua companheira, a psicóloga Graziela Domini. O dilema só foi resolvido por volta das 13h30 de hoje (28), depois que o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) determinou que o corpo de Mãe Stella fosse transportado da cidade de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano, a cerca de 90 quilômetros de Salvador, para a capital baiana.
Conforme decisão da juíza Caroline Rosa de Almeida Velame Vieira, o corpo da ialorixá deve ser enterrado no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, localizado no bairro de São Gonçalo do Retiro e, hoje, administrado pela Sociedade Cruz Santa do Axé Opô Afonjá. A decisão começou a ser cumprida no início da tarde, depois que um oficial de Justiça entregou a decisão na Câmara dos Vereadores de Nazaré, onde ocorria o velório da Mãe de Santo desde a quinta-feira.
A determinação judicial foi uma resposta a duas ações: uma ajuizada pela sociedade Axé Opô Afonjá e outra pelo sobrinho de Mãe Stella, Adriano de Azevedo Santos, presidente da entidade. As duas ações tentavam garantir que Mãe Stella fosse velada e sepultada no terreiro onde ela foi sacralizada como líder religiosa e que, em 1999, sob sua liderança, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Segundo os representantes da sociedade Axé Opô Afonjá, após sua morte, a mãe de santo necessita passar “pela realização das obrigações religiosas”, entre elas o axexê – cerimônia de desligamento do corpo físico de um iniciado no culto dos orixás para que se desvincule do plano material.
“Nos ritos de religião de matriz africana, o sepultamento e o ritual do axexê é fundamental, sobretudo, para uma líder religiosa”, sustentam os representantes da entidade civil no pedido de tutela com urgência. “O velório e sepultamento fora do espaço religioso é um agravo e afronta a toda a uma tradição religiosa africana e a sua comunidade.”
O recurso ao TJ-BA foi necessário porque, inicialmente, a companheira de Mãe Stella, a psicóloga Graziela Domini, decidiu que a ialorixá seria sepultada e enterrada em Nazaré das Farinhas, onde as duas viveram, juntas, os últimos meses de vida da mãe de santo – que deixou o terreiro com a saúde debilitada, em meio a bastante polêmica. Graziela afirmou cumprir a vontade da companheira, que, segundo ela, manifestou o desejo de permanecer em Nazaré das Farinhas.
As duas ações foram julgadas conjuntamente pela juíza Caroline Rosa. A magistrada destacou que se tratava de decidir entre a proteção ao que, de um lado, classificou como “patrimônio cultural” e garantia “ao pleno exercício do culto religioso” e, de outro, o direito que, em outras circunstâncias, estaria assegurado à companheira da mãe de santo, já que ambas tinham uma união estável.
“Ante a precariedade da decisão, vê-se que causará menos prejuízo se o velório se der em Salvador, visto que, assim, se evitará que todo um culto religioso seja violado ante a alteração do lugar do sepultamento da Iya Stella de Oxossi, ainda que indo contra o exercício da companheira de escolher o local de sepultar o corpo conforme direito que lhe assiste”, comenta a magistrada em sua decisão.
“Entendo que se deve conceder à comunidade o exercício do culto religioso, ante a supremacia do princípio que aqui seria violado, de forma irreversível, do exercício livre da religião da qual a Iya Stella de Oxossi era líder, bem como a proteção do patrimônio histórico e cultural do exercício da religião de matriz africana”, complementa a juíza.
Segundo o site do jornal baiano Correio, Graziela Domini criticou a posição da Justiça. "Vocês viram que eu estava convidando vocês para dar uma entrevista coletiva para dizer que do mesmo jeito que eu respeito a autoridade religiosa eu respeito a autoridade civil. Eu disse que se saísse uma liminar dizendo que era para levar o corpo, eu simplesmente o entregaria. Só não consigo entender como uma juíza dá uma liminar de um tema que ela não conhece. Mãe Stella é Maria Stella de Azevedo Santos, uma pessoa civil, que tem direito a escolhas", afirmou a psicóloga, garantindo que não recorreria da decisão para evitar que “o corpo de Mãe Stella ficasse rolando de um lado pra outro”.
Em nota, a Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia (OAB-BA) lamentou a morte de Mãe Stella de Oxóssi e argumentou que a ialorixá “faz jus a todas as honras reservadas a uma sacerdotisa de sua grandeza, de acordo com a tradição que durante tantos anos observou, ensinou e conferiu ampla publicidade”.
“A comissão entende que, diante de toda uma vida dedicada ao candomblé, mediante entrega voluntária ao sacerdócio, promovendo e defendendo a fé, além da longeva atuação na preservação da religião e da religiosidade como elementos identitários da cultura brasileira, a menos que exista disposição de última vontade (o que é desconhecido) de Mãe Stella de Oxóssi, como testamento [...] dever-se-ia assegurar-lhe a realização, em consonância com o art. 5º, inciso VI da CF no qual verifica a inviolabilidade da “liberdade de crença” e a garantia “na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias”, defende a comissão.
Nascida em 2 de maio de 1925, em Salvador, Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxóssi, conheceu o candomblé já adolescente, ao ser levada a um terreiro por uma tia. Era formada pela Escola de Enfermagem e Saúde Pública e iniciou sua função religiosa em 1976, quando foi escolhida como quinta ialorixá da tradicional casa Ilê Axé Opó Afonjá.
Ela escreveu vários livros, entre eles Meu tempo é agora; Òsósi – O Caçador de Alegrias; Epé Laiyé- terra viva e Ófun, sendo uma das primeiras mulheres a escrever sobre candomblé no país. Desde o início do mês, ela estava internada no Hospital Incar, em Santo Antônio de Jesus (BA), devido a uma infecção. Em comunicado, hospital informou, ontem, que a ialorixá teve sepse urinária, insuficiência renal crônica e hipertensão arterial sistêmica.
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