Quando o asfalto chega a determinada região, por um lado, traz impactos sociais e ambientais, por outro, possibilita desenvolvimento, comodidade, redução do sofrimento daquelas pessoas que dependem diretamente das estradas. No Semiárido, as rodovias, além de proporcionar viagens mais rápidas e seguras, podem também significar o acesso à água.
Foi a relação entre estradas e armazenamento de água que levou a equipe do Irpaa até a BR 116 Norte, no km 154, povoado Bendegó, município Canudos, onde iniciou uma viagem de investigação das formas de construção de estradas que viabilizam (ou não) o armazenamento da água da chuva para que as famílias possam utilizar este bem para a geração de alimento e renda.
A BR 116, que é tida como a maior rodovia totalmente asfaltada do Brasil, apresentando 4.566,5 km, teve seu último trecho de asfalto concluído durante o governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Visitamos várias comunidades no pequeno trecho de aproximadamente 150 km, observamos as construções de pontes e bueiros, registramos atividades agropecuárias às margens da BR, conversamos com moradoras/es no trecho entre Bendegó (Canudos-BA) e o Povoado Ibó (Abaré-BA) no km zero. No trecho citado foram verificados cerca de dez pontes e bueiros, em alguns casos cumprindo a dupla função (estrada e represa), correspondendo a um açude a cada 15 km em média. Em outros casos as pontes e bueiros servem apenas como passagem de água por baixo da estrada.
No km 121, na comunidade Baixa, em Canudos, encontramos duas realidades dentro da mesma propriedade. Ao visualizar um grande ponto de acúmulo de água ao lado da estrada, paramos e fomos investigar. Da estrada é possível avistar uma pequena casa, há cerca de 700 m. Lá conhecemos seu Luiz Almeida, um agricultor nascido em Chorrochó-BA e que após casar foi residir no município de Canudos. Ele lembra bem de como foi o processo para conseguir mudar a ideia dos engenheiros, que, segundo ele, haviam previsto a construção de uma ponte no leito do rio (como tradicionalmente é feito), o que não permitiria o acúmulo de água.
Seu Luiz conta que a ideia de barrar parte da correnteza veio do povo, que buscou a articulação com políticos da região. Isso aconteceu “quando nós vimos que iria fazer a ponte no centro e não ia deixar aguada e nós precisamos da água”, esclarece o agricultor.
O resultado da articulação foi a mudança de planos na construção. Em vez de uma ponte no leito, foram feitos bueiros localizados nas partes mais altas, em um ou dois lados do rio, desviando-o por até centenas de metros, de modo que possibilita o acúmulo de água na parte mais baixa, e somente após alcançar certo nível de água estocada (às vezes com espelho de até um km de comprimento e profundidade superior a quatro metros em alguns pontos) é que o excedente extravasa por baixo da ponte ou via bueiros localizados nas ombreiras da represa, funcionando como sangradouro.
A alteração no projeto, segundo o agricultor, foi o suficiente para garantir que ficasse represada uma pequena parte da água para os animais e manter a terra úmida para o plantio. “Ficou uma ‘represinha’ simples, mas tá boa, melhorou muito. Antes era um riacho que ia sair no Rio São Francisco... Muita água ia embora, aqui a correnteza é boa”, detalha seu Luiz.
A água que antes seguia em sua totalidade em direção ao Rio São Francisco passava por baixo de uma velha ponte que fazia parte de uma estrada antiga, construída dentro da propriedade do agricultor. A estrada já não é mais movimentada, pois o fluxo foi desviado para a estrada nova. Mas a ponte continua ali. A cada ano a água passa, demonstrando claramente a diferença entre a construção velha e a nova. Se no local onde está a velha ponte não encontramos mais que uma pequena poça d’água, basta seguir cerca de 400 metros para encontrarmos o açude viabilizado pela nova forma de construção adotada na estrada mais recente.
O barramento, ao qual Seu Luiz se refere, garante água para oito famílias, por oito meses em média, período que costumam durar as secas anuais. O tempo de acesso à água diminui por conta da quantidade de comunidades vizinhas que dependem da água armazenada ali. “Os caminhões-pipa pegam [água] para a região e a gente não ‘impata’, porque quando vem pegar é porque lá fora tá pior do que a gente, né?”, reflete o agricultor.
A água que sai do pequeno açude vai para diversas comunidades em Canudos, Chorrochó e Macururé. “Tem vez de ter dez caminhões parados aí na fila”, revela o agricultor. De acordo com ele alguns vendem a água dali nas comunidades, mas Seu Luiz não se importa. Ele lembra do tempo em que não havia sido construído o asfalto, quando sua família dependia da água armazenada na cisterna de consumo humano ou do carro-pipa, que trazia água de outras comunidades.
Foi nesse período que, fugindo de dificuldades ocasionadas pela seca, seu Luiz chegou a ir morar em São Paulo. Hoje ele e a esposa mantém uma lanchonete no Povoado Formosa (o povoado é dividido entre os municípios de Macururé e Chorrochó), km 112, às margens da BR 116, o que contribui muito na renda da família. “Tiro o leite aqui e levo para lá, ela faz todo tipo de bolo”, comenta orgulhoso seu Luiz.
Em Formosa, conhecemos seu Antônio Gonçalves Neto, que não morava na comunidade à época da construção, mas conta os relatos que ouviu na comunidade. “A água ia passar direto. Se ficasse era pouca água empossada. Depois que estavam começando a fazer essa ponte eles [a empresa responsável pela obra] botaram uma meia lua, meio alta, de um metro e meio de altura”, explica seu Antônio.
No local, além da ponte onde há uma pequena parede, que Seu Antônio chamou de meia lua, existem dois sangradouros em nível mais alto e afastados do leito do rio. Seu Antônio diz que “o riacho é forte. É obrigado ser uma barragem boa para acumular a água que passa aqui”, conta ele se referindo à quantidade de água que mesmo com o barramento ainda segue rio abaixo.
O morador diz que estão reformando a estrada, mas que o barramento ficará do mesmo jeito. “Mas se ‘altiasse’ a parede, fizesse um sangrador mais alto, essa água dava para muito tempo”, sugere o morador. Segundo ele, a água acumulada é encanada para as casas de Formosa, onde vivem aproximadamente 500 pessoas, as quais utilizam a água nos afazeres domésticos.
“A outra água [para beber e cozinhar] a gente pega longe, de caminhão, em um lugar que tem água limpa, porque essa aí não é muito limpa, devido a água ser pouca. Antes o exército estava colocando, mas agora cortou”, esclarece Seu Antônio, acreditando que a água não seria tão barrenta se o reservatório fosse mais profundo.
Mais adiante, em Chorrochó, Dona Marcolina Bernardes, uma aposentada, que mora na comunidade Monte Alegre, lembra aos risos dos banhos que tomava no riacho quando mais jovem. As boas lembranças dos banhos de riacho durante a juventude são menores que as recordações das dificuldades enfrentadas, pois “a água ia toda em embora”, conta, confirmando que nada ficava acumulado para animais e humanos.
As coisas começaram a mudar com a construção da estrada, mas segundo dona Marcolina, a iniciativa não foi das pessoas que projetaram ou executaram a obra de construção da estrada. “Foi o povo que pediu e eles deixaram aguada em todo canto”, revela dona Marcolina.
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